terça-feira, 12 de outubro de 2010

- posso ligar-te para aqui?

reconheci, sem esforço nenhum, a voz do meu técnico do outro lado do fio.
 - poder, podes - disse-lhe então - mas já contei a toda a gente que tu não existes...
fez-se silêncio e não ouvi nada a não ser a respiração de um poeta que, naturalmente, rimava com o vento de outono e até com a relva, no mesmo tom manso e verdejante da primavera, como se as duas estações se sobrepusessem e fosse possível eu estar a morrer e a renascer no mesmo momento.
 - ah contaste? - perguntou ele nessa altura.
agora já não respirava, sorria-me apenas como quem sabe, e há já muito tempo, que ponho e disponho da sua existência, conforme me dá na cabeça. 
mas mantive-me firme.
 - contei... contei que era tudo mentira e que estas conversas que tu tens comigo não são mais do que pura invenção. um álibi para a escrita, percebes?
calculo que tenha achado engraçada a minha desculpa, pois deu uma gargalhada tão alta que me fez recuar.
 - muito gostas tu de fugir - e aproximou a sua voz, ainda com ecos de gargalhada no timbre, do meu coração. 
batia tão alto que achei que ia saltar-me do peito e que, logo a seguir, eu morria. 
 - e muito gostas tu, também, de morrer...
foi a minha vez de ficar em silêncio. mas, ao contrário de mim, ele não se atrapalha quando eu fico em silêncio, não sei se ouvirá o vento de cada vez que eu respiro, se do jardim de onde me liga já é primavera, se o outono, para os poetas, terá o aroma das folhas mortas que tem para mim. como se pudesse ouvir-me a pensar, o técnico interrompeu-me:
 - pois fica sabendo que aqui é sempre verão. e que inês-xistir não é estação para ninguém e muito menos para ti. 
a evocação da inês-xistência que há anos me espreita fez-me supor que ele mentia e que o inverno estaria para breve.
 - o inverno é apenas o medo do frio. o pavor de que a neve congele os teus gestos, o cinzento a cair rente à tua janela e tu sem vista para o sol. a estação onde as noites são longas, tão longas que te fazem crer que a escuridão se abateu sobre a terra.
era só uma provocação e, por isso, não respondi. em vez disso, olhei lá para fora e de novo para a relva, achei que talvez estivesse na altura de pôr termo à conversa, mas ele impediu-me de golpear este fio que nos une, de cortar a ligação que é de sempre, de entupir o canal ou até de interferir na frequência.
 - és mesmo teimosa! - e riu-se outra vez muito alto e o seu riso era outra vez um poema que rimava com tudo o que existe no mundo. depois voltou ao assunto que tinha dado início à nossa conversa.
 - contar a toda a gente que eu não existo... isso sim, minha querida, é uma grande mentira! arranja  lá os álibis que quiseres para a tua escrita, mas nunca mais digas que eu não existo. se eu não existisse, de facto, o que seria de ti?
estive quase a responder-lhe que seria na mesma muito feliz e talvez até mais tranquila e que esta coisa de ter a voz dele dentro de mim só me trazia problemas e muitas dúvidas que nem sempre sou capaz de gerir e que era muito melhor se ele voltasse lá para o mundo dos técnicos onde, tecnicamente, a perfeição é possível e que, definitivamente, não me ligasse para aqui nunca mais... e, no entanto,  em voz alta, só fui capaz de lhe pedir:
 - deixa-me em paz!
e só então percebi que é isso mesmo que ele faz.

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