sábado, 2 de outubro de 2010

a notícia abriu ontem os telejornais

um anjo atirou-se do céu e morreu, estão ainda por esclarecer os motivos


a seguir mostraram a praia onde o anjo jazia. pouco mais era do que um novelo de luz a apagar-se na areia, as asas desfeitas pelo embate, a mancha incorpórea de uma qualquer substância divina irrompendo da túnica branca, mas sem que uma única gota de sangue a desfigurasse. à sua volta, a multidão conspirava. porquê estatelar-se no meio de uma praia mortal, se ao seu dispor tinha as extensões imortais do azul? por que razão escolher um destino perene e humano, se ao seu alcance estavam os cumes do céu, as benesses de deus, os esplendores perpétuos da luz? não é todos os dias que se assiste à queda de um anjo, é normal que a multidão se questione se o paraíso terá, afinal, precipícios, abismos, que a câmara ofereça o banquete da morte de um anjo em directo, que a repórter se esmere por recolher impressões, que a notícia dê azo a comentários em estúdio sobre a justiça divina e a sua eficácia, que ninguém compreenda por que razão uma criatura, por natureza mansa e benigna, se atrofia desta forma ridícula, quase perversa, na orla costeira de um mapa terrestre.
espero que todos se afastem, que a multidão se dissipe, que as câmaras se apaguem, que a noite derrame o seu manto sobre ele e que o cubra de estrelas. então, devagar, aproximo-me. é ele, não há dúvida, o meu anjo da guarda, saberia reconhecê-lo entre mil, mesmo sem nunca o ter visto, o anjo que há anos mantenho num pedestal de ficção, ou de fé, hoje já não tenho a certeza de nada, e ao qual pedi vezes sem conta uma prova da sua presença ao meu lado. a custo, endireito-lhe as asas, sacudo-lhe a areia do manto, pego-lhe ao colo e levo-o para casa. afinal, foi do meu coração, e não dos abismos do céu, foi do meu coração que se atirou ontem à noite, quando em segredo lhe disse que tinha deixado de acreditar em anjos da guarda.

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