quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

estende-se ao sol.


há dias e dias que o céu lhe chega banhado de azul
e agradece e diz
obrigada
em voz alta.
dias em que fala com ela, até quando parece que fala com ele.
obrigado
diz ele em voz baixa.
estende-se ao sol e isso é tudo o que importa neste momento ::
reparar no céu abaulado
tum tum
sentir-se banhada de azul ::
obrigada ~



de verde :
diz ele
e ela mostra-lhe a relva.
estende-se ao sol e mostra-lhe a relva e ele diz :
antigamente deitava-me aqui mas agora não posso porque a pintaste de azul.
é só uma crença
diz ela
e o céu fica banhado de verde. 
não tarda e haverá bunganvílias vermelhas a trepar pelos muros
é outra vez primavera
diz ela
e estende-se ao sol e renasce para o céu, renasce para a relva, renasce para ela.
tum tum
e ele nada ::
não quis banhar-se de azul nem lhe abriu as asas.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ɐ l ʄ ɑ ɓ ɜ ʈ θ ʂ ~*.


acreditam que sim, que falam a mesma língua.
que ele dizer
amo-te
e ela
ɐɱθ~tɜ
os irá levar ao mesmo refúgio e que irão servir-se das mesmas metáforas, dos mesmos padrões, das mesmas vivências. 
ou seja, irão entender-se.
ele bate
tum~tum
ela ouve
⊺ʉɱ::⊺ʉɱ
e abre-lhe ɒ ƥθʀʈ∀
mas ele não entra, porque não vê porta nenhuma.
os alfabetos são como os afectos
diz ela
cada um tem os seus
e mostra-lhe os dela ::
ɐ l ʄ ɑ ɓ ɜ ʈ θ  ɖe ∀fəc⊺⊙ʂ
se lhe falarem de afectos, talvez não saiba o que são.
afectos
diz ele
e ela não sabe o que são.
∀ɱ⨀ʁ?
e ele não reconhece a expressão.
mas, sim, acreditam :: que falam do mesmo. 
falam de ʈuɗɸ e ʈuɗɸ é um mundo
tudo e nada e um mundo para ele
ʈuɗɸ ɜ ɴɐɖ∀ ⋿ ʋʍ ɱ∪nɖ⨀
para ela.
falam sempre do mesmo :
só que em línguas diferentes.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

ou é, ou é ::

e dispôs as palavras em círculo.
vais fazer uma mandalma?
quis ele saber.
vinha de humano, hoje vinha de humano e tinha voz de homem. não tinha batido à porta e entrara sem pedir-lhe licença
tum tum ::
quem entra assim é o anjo
disse ela
mas tu tens de pedir licença
e ele pediu :
posso entrar?
~
ou és um anjo, ou és um homem
disse ela
e dispôs mais palavras num círculo menor e já eram dois círculos, um dentro do outro.
tens a certeza?
perguntou ele
mas continuou a dispor as palavras em círculos e não respondeu e ele insistiu :
se for homem não posso ser anjo e se for anjo não posso ser homem, é isso?
não é isso
disse ela.
e já ia no sexto círculo.
são sete
e mostrou-lhe e ele disse
sempre é uma mandalma, afinal.
~
ou és um homem-anjo, ou és um anjo-homem
disse ela.
qual é a diferença?
quis saber ele.
concentra-te só na mandala  
disse ela.
e ele concentrou-se ::

ou és um homem-anjo e vês a mandala de fora para dentro, ou és um anjo-homem e és tu que a teces ::
de dentro para fora.
percebes?
o homem-anjo tece os casulos e o anjo-homem :: as asas
tum tum ::
ah
disse ela, quando o viu levantar-se
e só mais uma coisa :
da próxima vez :: bate à porta '


:: :: ::
continua

sábado, 11 de fevereiro de 2012

és carne viva

disse ela.
e ele encolheu-se e pediu-lhe
não toques.
mostrou-lhe as feridas:
aqui
e aqui
e aqui.
tantas!
disse ela.
ardem, não toques
voltou ele a pedir-lhe.
e então ela lembrou-se do anjo, lembrou-se de como nunca nada lhe ardia, nessa altura era ela quem se encolhia, apontava-lhe as feridas e o anjo lambia-as até que ficassem em crosta e dizia ::
põe-te ao sol que isso sara
e ela durante dias a fio exibindo as feridas à sombra.
aqui
e aqui
e aqui.
deitava-se à noite e as cartilagens rangiam, de cada vez que mudava a disposição dos fantasmas nos sonhos, as estrelas ardiam de cada vez que o céu não se abatia sobre ela.
põe-te à luz
dizia-lhe o anjo
apontava-lhe a carne viva do coração e ela dizia
arde
e pedia
não toques.


:: :: ::
continua

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

anda


disse ela
puxando devagarinho os seus olhos até ao lugar onde deixavam de ver.
fazia tão escuro que achou que cegava.
não puxes
e ela parou.
isso cansa
disse ele.
sabia que sim e que era por isso que adormeciam todos os dias estoirados, de luz apagada.
cegos
disse ela
e ele repetiu ::
isso cansa.




:: :: ::
continua

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

se havia ali um par de asas, ainda não se notava




mas notam-se os braços
disse ele.
e abriu-os para ela e estavam cobertos de penas humanas. 
não chega
disse ela
e doeu-lhe.
que pena
disse ele
e voltou a fechá-los.




:: :: ::
continua

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

a humana~idade do anjo

tum tum
e batiam à porta.
quem é
perguntou ela :
e era o técnico, desta vez para arranjar um esquentador empanado e por isso foi rápido, não houve conversas, tão pouco referiram as buganvílias que, nesta altura do ano, trepam sem flor às paredes, ele chegou a meio da manhã e foi directo ao esquentador empanado, demorou-se quarenta e cinco minutos, nem sequer levou muito caro - já que vinha da parte da pedicura da mãe de uma amiga - no final deu-lhe um aperto de mão e ela disse
muito obrigada
e foi tudo.
depois do almoço, batiam de novo e agora era ela
tum tum ::
e ele veio abrir e ela achou-o :
cansado ~


:: :: ::
continua


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

os anjos são fáceis de amar

disse ele.
tantos dias de ausência e ei-lo de volta, algodão a cair rente à janela do tecto, um novelo de luz mansa colando-se ao vidro
voltaste!
disse ela.
e sentiu o bater das asas aceso quando abriu os braços para o ir saudar ::
que saudades!
::
batia como já tinha batido outras vezes, batia naquela cadência que só os anjos sabem trazer, num silêncio pausado, profundo, batia sem descompasso nenhum ~ amorosamente ~ , a gravidade em torno do eixo puxava-o para o centro com tanta leveza que deu por ele instalado no peito.
tum tum.
os anjos são fáceis de amar
voltou ele a dizer, agora do lado de dentro e sem abrandar o pulsar
tum tum.
repara ::
e chamou-lhe a atenção, criando-lhe ainda mais espaço na alma, como se fosse uma espécie de ardor e a luz entrasse por ele às golfadas, e a seguir continuou a soprar.
somos perfeitos, bonitos, bondosos ::
os anjos são a graça de deus
brincou ela.
Graça
corrigiu ele 
e estendeu o milagre até Deus e depois distendeu-o de volta à humanidade e a seguir suspirou ::
os homens são difíceis de amar.
pareceu-lhe cansado e ela tossiu.
no peito, o novelo de algodão relembrou-lhe o pulsar
tum tum ::
olhos de luz
lembrou-se ela, e veio-lhe um travo a perfume.
diz-se que vêem o fundo do fundo...
diz-se que sim
disse o anjo.
e acrescentou que o fundo do fundo é :: cristalino ::
enroscaram-se mais e, de cada vez que se enroscam assim, ela lembra-se das bunganvílias e do terraço e de terem brindado à morte do anjo, pouco depois se ter despenhado na praia, e riem-se os dois. 
tum tum ::
se eu não fosse um anjo, tu não me amavas assim ~
disse o anjo.
e, quando ela voltou a tossir, ele dispôs-se a mostrar-lhe o seu lado humano e voltou a dizer-lhe :
- os homens são difíceis de amar.
::
ficaram assim. ainda enroscados e ela a lembrar-se do anjo à mercê da praia mortal, da multidão e das câmaras, do suor das palavras, das cartilagens sangrando e uma mancha de pele enclausurando-lhe as asas
já volto :
disse ele

e então também disse que, quando voltasse, teria voz de homem e ~ provavelmente ~ viria de luz apagada.
tum tum ~



:: :: ::
continua

daqui