sexta-feira, 7 de setembro de 2012

queres ler a sina, amor?

ainda não eram nove horas e já eu estava à porta do jardim tropical. só abria duas horas depois, às onze, e fui fazer tempo para os outros jardins de belém, àquela hora ainda sem os turistas de máquina ao ombro e sem as mães com as crianças e com o rio a servir de pano de fundo. estava lindo e eu ia contente, já de olhos pregados no chão em busca de matérias-primas, quando fui interpelada por uma cigana
 queres ler a sina, amor?
disse que não e ela aproximou-se.
 devias querer! vejo grandes perigos no teu futuro.
ri-me e abri os braços ao sol, dei uma volta sobre mim própria, como quem dança, e disse à cigana
 sou uma alma abençoada, não vês?
 por isso mesmo é que tantos perigos te espreitam
respondeu ela.
agradeci-lhe e segui caminho. não havia assim tantas matérias primas no chão, para além das folhas que o verão ia deixando cair, em tonalidades que iam do verde aos castanhos, passando pelos amarelos. tinha saído de casa com a intenção de ir ao jardim tropical, já a pensar no workshop de dia 21, em pleno equinócio de outono, para descobrir que tipo de matérias primas haveria por lá. 
estava de cócoras a apanhar umas folhas do chão quando a segunda cigana veio ao meu encontro.
 ai filha, tantas invejas que há sobre ti!
disse ela, ao mesmo tempo que me ia rondando.
levantei-me do chão e saudei-a
 bom dia.
 dá cá a mão que eu leio-te a sina
e estendeu a dela para mim e eu apertei-a e repeti o bom dia.
 a tua vida está cheia de pessoas que te querem fazer mal
disse a cigana.
de novo me ri, só que desta vez não dancei, dei-lhe uma palmadinha afectuosa no ombro e repeti o que já tinha dito à primeira
 sou uma alma abençoada por deus
e segui caminho.
a terceira cigana não me deixou dar nem três passos
 ó minha querida, não queres ler a sina?
agradeci e disse que não.
 fazemos assim, insistiu ela, se eu acertar, dás-me um euro, se eu não acertar não me dás nada.
mas eu, que ultimamente ando tão certa da minha sina que já não me deixo enganar facilmente, continuei a caminho de um pedaço de relva, onde jaziam uma série de flores. de cócoras, juntei-as e pu-las em círculo e depois fiz um círculo à volta do círculo e depois outro e mais outro e ali fiquei duas horas. 
a certa altura, uma senhora parou e quis saber se aquilo eram modelos para eu depois fazer em crochet e eu disse que não.
 mas olhe que até podiam ser
disse ela. e aproximou-se para poder vê-las de mais perto.
 esta aqui já me deu umas ideias!
e apontou para a primeira e explicou-se:
 é que eu também faço umas coisinhas em renda, percebe? as minhas amigas até têm inveja, porque eu sou muito jeitosa, e essa aí acho que ficava mesmo bem num naperon ou no centro de uma toalha ou assim.
estive quase para sugerir à senhora que fosse ler a inveja na sina, mas limitei-me a acenar com a cabeça
 é. num naperon ficava muito bem.
 mas isso é preciso muita paciência, não é?
quis saber a senhora e eu disse que sim.
e é paciência, sim, mas não é só. é sobretudo e acima de tudo presença. foco. atenção. e a partir daí tudo flui...
estava a ir-me embora quando a quarta cigana veio ao meu encontro. 
 ai tanta inveja que anda aí à tua volta, menina...
apontei-lhe a árvore e depois o pedaço de relva onde as mandalas dançavam e disse-lhe
 se me quiseres ler a sina, ela está ali escrita.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

fellini *



ia dizer que o encontrámos na rua, mas acho que é mais verdadeiro dizer que foi ele que nos descobriu e chamou a atenção. não faço ideia do que estaria a fazer instalado naquelas escadas, mas assim que passámos miou e a L., mais atenta do que eu aos barulhos do campo, disse logo :
 olha, mãe, está ali um gatinho. 
 deixa-o estar, disse eu. 
e segui.
mas ele voltou a miar e era um miar muito mansinho, nem sequer me pareceu que fosse um miado de mimo ou de quem pretendia inspirar compaixão, mas de pura bondade, de saudação, de presença.
 ó mãe, ele é tão querido, não é? 
insistiu a L. 
e, puxando-me a mão, obrigou-me a voltar para trás.
 acha que posso pegar-lhe?
achei que sim e a L., devagarinho, subiu os degraus da escada onde ele estava instalado e ele deixou-se pegar sem oferecer resistência. diria mesmo que se aninhou nos braços da L. e que os sentiu familiares e seguros. 
 vá, agora vamos embora, disse eu passado algum tempo. 
e seguimos.
o caminho foi todo com a L. a falar do gatinho. ou da gatinha, nessa altura tanto eu como ela achámos que era uma gata. e nem o espectáculo do sol a pôr-se por trás das serras acalmou a L. - que queria à força saber se, no regresso, podíamos passar de novo à frente da casa para ver se a gata ainda estaria nas escadas. 
disse que sim e passámos, mas já lá não estava.
 que pena!, suspirou a L. 
e não falou noutra coisas até serem horas de irmos jantar. 
 posso ir procurá-la?, pediu-me, mesmo antes de irmos para a mesa e, sem esperar pela resposta, saíu porta fora. voltou nem dez minutos depois, radiante, com a kitty nos braços, a rir e aos gritos
 temos uma gatinha! temos uma gatinha!
a M. veio a correr e disse
 ah, tão querida!
e a F.
 kitty? kitty é bué mau, temos de lhe arranjar outro nome!
nessa noite, depois de lhe termos aberto o portão para nos certificarmos se não quereria voltar à sua vida e às escadas, a kitty dormiu lá em casa, na cama da tia R. 
se foi do contágio entre a pele e os pêlos não sei, mas sei que, no dia seguinte, a tia R. acordou e reivindicou que a gata agora era dela, que ia levá-la para lisboa e que o seu nome passara a ser clementina.
 não é justo!, queixava-se a L., nós é que a encontrámos!
 sim, era o que faltava!, insurgia-se a F., ir para uma casa em lisboa que nem sequer tem jardim!
 mas depois podíamos ir lá visitá-la!, dizia a M., que no fundo achava que à tia R., que vivia sozinha, a companhia da gata seria mais útil. 
 se ao menos a mãe deixasse sermos nós a levá-la...
 deixa, mãe?, perguntou a F.
 deixa, mãe?, perguntou a M.
 deixa, mãe?, perguntou a L.
não disse que sim nem que não e, nos dias que se seguiram, limitei-me a observar. 
a gata, que se descobriu entretanto ser gato, passou a ser o centro das atenções e todos os dias, pela manhã, a L. e a M. vinham até ao meu quarto para me perguntarem,
 e então, mãe? já decidiu se podemos levá-lo?
ao mesmo tempo que a F. tentava provar-me que ele nos tinha escolhido e que precisava de nós.
disse 'não sei' até ao último dia e ontem, no último dia, dentro de um cesto de roupa onde, de início, odiou ser 'enfiado', o fellini fez connosco o caminho de volta para casa. 
temi que pudesse estranhar o jardim, que tivesse saudades das escadas e dos barulhos do campo, que se sentisse infeliz por o termos privado das canções das cigarras que, à noite, enchiam o pátio, mas não me parece que tenha estranhado ou sentido falta de nada, pelo contrário. anda por aí à vontade e aos saltos, de cada vez que uma borboleta lhe chama a atenção, já subiu ao telhado e a duas das árvores, esta noite dormiu com a F., de manhã foi a L. quem lhe serviu o pequeno-almoço e ainda há pouco estava refastelado no colo da M., a ver televisão.