sábado, 7 de abril de 2012

aleluia

que o torpor da morte não nos mergulhe no desespero de uma ausência, mas antes na doce tranquilidade da espera e no milagre de continuados renascimentos. há anos que não vou à missa, os dogmas em que a igreja se encerra estreitaram-me as margens do voo faz já muito tempo, prefiro a eternidade do espaço e do tempo às lei do jejum, a fé ampliada no peito às genuflexões em veludos de confesssionário, quando os homens se deixam levar pela bondade e abrem os braços, vejo neles a mesma penugem que cobre as asas dos anjos.
que me perdoem os crentes, que buscam na liturgia a redenção dos pecados e na hóstia o encontro com deus, a mim faz-me sentido o mundo inteiro e cada um dos seres que o habitam morrendo e ressuscitando a cada dia que passa, faz-me sentido o céu mudando de tonalidade ao longo do dia, a comunhão de todos os seres numa essência comum, faz-me sentido experienciar deus nos gestos mais simples do quotidiano.
cristo não é sequer - para mim - uma metáfora do mártir, mas um homem comum que soube elevar-se acima dos condicionamentos e das contrariedades e dos caprichos e que, benignamente, deixou que a sua luz ficasse ao alcance de todos aqueles que escolhem viver de olhos abertos.
aleluia e talvez o significado da morte não seja mais do que um momento de pausa, um intervalo entre o que fomos e o que iremos ser, a conscência de que a cada instante das nossas vidas somos tudo o que somos e de que há uma páscoa presente em cada uma das nossas células. e se é certo que os homens precisam de histórias, que precisam de uma linguagem de símbolos para se situarem na realidade dos mitos, não é menos verdade que a alma se sobrepõe aos arquétipos. de que nos serve a celebração do mistério pascal se ao longo do resto do ano, se ao longo do resto da vida, não formos capazes de ressuscitar do sono mortal de todas as noites e de, a cada manhã, nos descobrirmos abençoados pelas infinitas possibilidades de recomeçarmos tudo de novo?

sexta-feira, 6 de abril de 2012

tantas!



as coisas que tenho para te dizer e que trago guardadas à espera do dia em que me saibas ouvir. não é falta de tempo nem de vontade nem de paciência, é simplesmente não teres ainda focado a tua atenção no meu peito e continuares à procura do movimento e dos sons nos meus lábios. como se as coisas que tenho para te dizer estivessem no movimento e no som das palavras. não estão e é por isso que as trago guardadas. para já, estão guardadas em mim até sentir que és capaz de as ouvir sem que eu diga nada. parece-te estranho e eu sei, que achas estranho o silêncio atrás do qual me resguardo, estranha esta maneira que tenho de falar contigo sem que os músculos do meu aparelho fonético se ponham em marcha, estranha a possibilidade de poder haver um canal onde nenhum ruído humano interfere nas mensagens que o céu nos envia.

sim, podia escrevê-las aqui, é verdade, essas coisas que tenho para te dizer, mas que esperam pelo dia em que possas focar a tua atenção no meu peito. posso escrevê-las agora e esperar que as descubras, que afinal se revele o que guardo através de um canal de néon. mesmo não sendo sequer parecido com a luz que entrevejo cá dentro, é perfeitamente capaz de acolher o que sinto. aviso, porém, que aqui sim, há ruídos que podem interferir, ruídos humanos, como a polpa dos dedos tocando nas teclas, mas também o ruído dos pássaros todos lá fora, a esvoaçar sobre a relva e a debicar a roseira, o murmúrio do mar lá ao fundo, de cada vez que desata a dar beijos à areia, a plenitude da lua a encher-se de branco e hoje estará cheia, em Balança, homenageando, talvez, os desequilíbrios humanos e as metades que nem sempre sabemos juntar para nos tornarmos inteiros. a lua em Balança, o sol em Carneiro, é-me familiar o eixo que liga os dois astros e o desejo de que se encontrem a meio do caminho.

tantas!, já reparaste?, as coisas que já nos dissémos e que não passaram de ideias, as palavras todas com que afastamos presságios, a ilusão de que fazem sentido, a evidência de que geram equívocos. trago mil coisas guardadas cá dentro que só são verdadeiras porque não são dizíveis. mil coisas guardadas à espera do dia em que não seja mais preciso dizê-las porque as sentimos tal como são e não como nos parecem, quando são ditas e ficam aquém do que somos. 
como os olhos às cores que colei por cima dos teus e que apenas nos provam que a humanidade, no que a ti diz respeito, olha para o mundo através do azul. fosse eu acreditar que era só isso, humanidade e mais nada o que os teus olhos revelam, e nunca seria capaz de ver para além dela. e, no entanto, aqui estamos nós, separados pela distância ilusória do espaço e as nossas almas livres no éter, acima dos planos comuns que traçaram para os dois quando descemos à terra e as moldámos à carne e ao quotidiano. 

e, sim, é possível que de repente nada faça sentido, que tenhas perdido o fio à meada, que aches estranho o que eu escrevo, que não seja nunca possível dizer-te o que trago guardado a não ser que se deixem de ouvir os ruídos humanos que interferem com o desejo das almas. o que sei, o que sinto, é que vivemos cheios dos caprichos humanos, cheios dessa vontade comum dos mortais de esgotarem as forças, vivemos a acreditar na separação e na dualidade do preto e do branco. e, sim, agora perdi o fio à meada e a leveza que hoje sinto nem sequer vem das coisas que trago guardadas para te dizer, mas da certeza de que não há nada que te eu possa dizer que tu ainda não saibas.

e mais?


despregar os olhos da cruz


que o sofrimento engrandece e que aumenta exponencialmente as hipóteses de nos tornarmos mais fortes, mais sábios e mais evoluídos, já todos sabemos. e não é para quem quer, é só para quem pode, como se se tratasse de um luxo, de um mérito reservado aos eleitos, de uma qualidade dos mártires, embora também assole, afinal, todo e cada um ser mortal que se preze, feito da carne comum que a todos nos cobre. sofrer. sofrer muito. sofrer até que não haja mais nenhuma célula que não lateje de dor. sofrer nem sequer até dizer chega, porque não há nada que chegue, nem sempre há algo que faça passar, alguma coisa que cure, que alivie, a não ser sofrer ainda mais e aguentar firme, enquanto mágoas e dores nos rasgam por fora, ao mesmo tempo que nos comem por dentro. 
temos todos dias assim, vidas assim, manias assim. a imagem de Cristo na cruz, com as mãos e os pés esventrados por pregos e coroada de espinhos, deixou-nos gravada nos genes esta certeza de que só quem sofre até aos limites pode algum dia vir a alcançar as alturas, o paraíso, o reino dos céus. experimentem passar os vossos dias na calma beatitude dos que não padecem de qualquer espécie de mal, dos que não se queixam de nada, não são acometidos por espamos nem febres e verão como é pouco o respeito que colhem em troca. quem não sofre, por pouco que seja, não é digno de compaixão, de carinho, de mimos. tão pouco é normal, já que o normal, humanamente falando, é sofrer. e então agarramo-nos à normalidade, agarramos-nos ao sofrimento, carregamos cruzes às costas até ficarmos em sangue, até ficarmos exangues, esventramos os pés e as mãos e o peito e exibimos as feridas como se fossem medalhas de guerra. e assim vamos ganhando algum mérito, conquistando a compaixão dos que nos rodeiam, que nos pegam ao colo e que nos fazem festas e que nos limpam as lágrimas, ao mesmo tempo que dizem "pronto, pronto, já passa". com sorte, somos aquele ou aquela "que já sofreu tanto" e isso, de certa forma, dá-nos estatuto, dá-nos credibilidade, dá-nos alento e razões para não abrirmos mão de tudo o que nos queima por dentro. não concebemos sequer a possibilidade de o sofrimento ser só uma ideia, um conceito, um preconceito, uma herança. e sofremos até quando não queremos sofrer. sofremos para não sofrer mais.
despregar os olhos da cruz é negar a nossa própria humanidade e é por isso que nos é tão difícil fazê-lo. quem seríamos nós, sem dores e sem feridas? quem seríamos nós, se não houvesse mais nada de que nos queixássemos? quem seríamos nós, se Cristo afinal não tivesse sido cruxificado? e, no entanto, todos nós temos dias assim, pedaços de vida sem dor, momentos em que despregamos os olhos das feridas, alturas em que sofrer nos parece, afinal, o maior dos absurdos e o desperdício mais estúpido. quase me atreveria a dizer que, quando largamos as nossas dores, quando as esquecemos, quando nem sequer nos lembramos que as temos, não sabemos quem somos. a leveza que toma conta de nós parece irreal, levitamos como se não houvesse mais peso, tornamo-nos anormalmente felizes. humanamente, porém, é impossível que o sofrimento nos tenha deixado para sempre a gozar dessa anormalidade, ou então seríamos anjos ou qualquer outra coisa que a matéria não pudesse atingir. 
mas somos humanos, pois é. não deixou de haver carne nem sangue, não deixou de haver cruz, não se escoou do nosso corpo a memória das dores ancestrais, nem nós saberíamos o que fazer se o lugar onde sempre as guardámos desaparecesse sem deixar rasto do nosso mapa genético. e, de novo, sofremos. sofremos tanto, sofremos por tudo, sofremos por nada, sofremos até quando não sabemos por que é que sofremos, quase como se a dor fosse uma prova de vida, uma garantia de que continuamos aqui, uma maneira de ocuparmos o tempo, um mérito que um dia nos fará ser merecedores da redenção e da glória dos céus. 
e então desprego os olhos da cruz, palpo o meu corpo e não encontro uma única chaga, não há sequer cicatrizes de feridas antigas, não me dói nada. desfaço a noção que tenho de mim como um punhado perene de ossos, de órgãos, de células, de músculos e nada lateja. ponho as mentiras de lado e desligo os ecrãs onde, repetidamente, se projectam todos os filmes desde que nasci até hoje e alguns outros que nem sequer aconteceram ainda. escrevo 'paixão' na certeza de que as palavras nem sempre falam verdade. é sexta feira e a paixão de hoje exala um hálito trágico que não vou respirar. e escolho escrevê-la sem recorrer à memória de nada, mas apenas à terra que habito. pai chão. e Cristo surge-me então como uma luz de presença benigna. e o milagre da cura é segui-la sem deixar que se apague, já que é apenas no escuro que o sofrimento se acende.