sábado, 26 de março de 2011

grande ilusão!...


disse-me ele, hoje de manhã, ao ver as asas 
que colei rente ao meu corpo, no retrato.
e o que sinto é que há um par para cada um
e que voar está ao alcance de nós todos.
a não ser quando, 
iludidos pela nossa humana idade,
resistimos ao milagre
de nos revelarmos anjos.

quinta-feira, 24 de março de 2011

estou-te profundamente grata

daqui
disse eu nesse dia ao anjo, ao reparar que era agora eu quem tinha as asas e ele quem suportava a mancha humana do meu corpo e que se servia dele para me dar um grande abraço. 
e assim temos estado, até hoje, eu e o anjo. sentindo que somos só um e o mesmo e que nada nem ninguém nos separa a não ser quando fingimos: ele que é um anjo e eu que sou uma pessoa, em vez de uma unidade com deus. 

terça-feira, 22 de março de 2011

lindos, maravilhosos, poderosos... nós todos ♥

da Ica ♥
coitadinhos de quem? de nós? porquê? coitadinho de si porquê? ah... porque lhe tiraram 10% do ordenado! porque tem um emprego de merda? porque a vida não está fácil? porque o seu casamento vai mal? porque lhe apareceu um tumor? porque morreu a sua prima? porque o país está entregue a um bando de ladrões? porque não tem dinheiro para  mandar catar um cego? porque é tudo uma treta e ninguém é capaz de mudar nada!

ah! coitadinho de si, de facto. coitadinhos de nós todos, sim, que para aqui andamos a carpir as nossas mágoas e a mastigar tantos queixumes neste mundo tão injusto! é mesmo de ter pena, estou de acordo, muita pena de nós próprios e da vidinha que levamos, sempre aquém dos nossos sonhos. 
afinal, fosse o estado um patrão compreensivo e generoso e tinha-o antes aumentado. houvesse a sorte de lhe oferecerem outro emprego e a vida toda era mais fácil... ah, e se o marido não andasse aí com outras, ou se a mulher não se queixasse tantas vezes - e sempre das mesmas coisas - o amor seria lindo! se ao menos não lhe tivesse aparecido esse tumor que lhe põe a vida em perigo... e a prima? que tragédia, alguém morrer assim tão novo! não fosse este bando de ladrões e o dinheirinho ia chegando para comprar mais qualquer coisa, era ou não era? ah pois era, houvesse quem pegasse nisto e desse um rumo a esta merda e talvez fosse possível, começar a ver a luz lá no fundinho do túnel...

há muitos dias em que caio nesta armadilha e em que sou, também eu, a coitadinha do meu filme. nada me anima, nesses dias, em que me enredo em argumentos fatalistas e me presto a ter pena de mim própria. tudo me pesa, é tudo mau, atribuo culpas a quem quer que esteja à mão: aos filhos quando gritam e me esfrangalham os nervos; às editoras que não me pagam o que devem; à chuva do Inverno que me deu cabo do telhado; à fila vagarosa de carros à minha frente - e eu com pressa...
a lista seria interminável e caberia, toda ela, na designação comum das 'coisas que me fazem mal'.

felizmente há outros dias. dias em que nada pesa e tudo é leve e fico só maravilhosa e admirando o meu poder. deixo de ser personagem, saio do filme e realizo, a cada agora, o que só eu posso mudar. e, mudando, o mundo muda à minha volta. 
e assim somos nós todos, sem excepções: maravilhosos, poderosos e capazes de mudar, a cada instante, o nosso mundo. a cada dia mais um pouco, a cada pouco mais um tanto, sobretudo quando infringimos a regra de ter pena de nós próprios. 
ah pois é, experimentem lá e vão ver como é tão bom, nem que dure só um minuto... 

quinta-feira, 17 de março de 2011

please don't strongly interpret the dot!

este blog conta, a partir de hoje, com uma bola no canto superior esquerdo - tentei pô-la noutro sítio, mas a linguagem html ainda é para mim um enigma e, portanto, deixei-a ficar ali mesmo: no canto superior esquerdo. vão vê-la mudar de cor e, se clicarem em cima, depressa verão que é um link que vos leva ao  Global Consciousness Project , um site onde poderão encontrar todas as explicações técnicas sobre o modo como funciona e por que razão é que a bola muda de cor. 

so: please don't strongly interpret the dot, but be aware of how responsible you are about changing the world's level of consciousness :)

terça-feira, 15 de março de 2011

cada um é o milagre de si

há quem veja o milagre como uma prece ouvida por Deus, eu diria que é antes Deus expressando-se em nós. durante anos e anos fizeram-nos crer que era Deus lá em cima no céu e nós cá em baixo na terra e que re-ligar uns e outro exigiria a uns sacrifício e ao outro misericórdia - para além de uma série de dogmas com que se disciplinaram as práticas religiosas, um pouco por todo o mundo. nunca estivemos tão longe de podermos ser UM e o mesmo como durante esses tempos, em que acreditámos que o céu e a terra não eram um só e que a redenção era a justiça divina para a resistência, ou mesmo a recusa, aos nossos pecados mortais.

se no princípio era o Verbo, o som puro, depressa nos apropriámos dos seus timbres ocultos para transformar em palavras o que ele apenas intuía, soprando. e foi assim, acredito, que fomos gerando tantos equívocos. o milagre deixou de respirar das nossas entranhas - como hoje ainda respira das entranhas dos bichos, das árvores, das pedras, dos rios - para se tornar num pedido a algo ou a alguém fora de nós. de co-criadores, passámos a seres criados à semelhança de Deus, sendo porém maiores as diferenças que nos separam do que as semelhanças que nos consubstanciam numa essência comum.

como se não nos bastasse esse logro, inventámos ainda que Deus não era um e o mesmo para todos e demos-lhe designações consoante a nossa cultura, a nossa história, os nossos mentores e, sobretudo, os nossos medos. e as re-ligações do que afinal sempre esteve ligado - ou as religiões que nos separaram do Todo - enraizaram em nós esta crença profunda de que temos de nos esforçar, de nos sacrificar, de carpir muito e de ser muito bondosos para podermos merecer a presença de Deus nas nossas vidas.

querer é um delito da mente, mas crer é um deleite do espírito. querer que o santo nos cure, que Nossa Senhora nos traga alívio para as dores, que o Buda nos ilumine, que Alá nos receba de braços abertos, que os anjos nos guardem de todos os perigos não é mais, afinal, do que recusar assumir e expressar esse milagre que cada um é para o transformar no pedido de que algo ou alguém realize o nosso desejo mais íntimo: sermos, à semelhança de Deus, co-criadores do Universo e da Vida.

assim como a culpa dos males que nos atingem não é de terceiros, também a graça dos bens que colhemos não se fica a dever a benesses alheias. não creio sequer que possamos falar de bens e de males como se fossem matérias distintas, mas antes frequências da mesma espiral de energia, todas elas presentes em nós - e em Deus. não posso sequer garantir que faça um milagre maior o que aspira às alturas e sobe ou se é, afinal, o que desce aos abismos e mergulha no escuro o que verdadeiramente transmuta as sombras em luz.

de uma coisa, porém, tenho a certeza: cada um é o milagre de si, sempre que crê ser parte do todo e se cura e se alivia das dores e se ilumina e se recebe de braços abertos e se resguarda dos perigos que o medo lhe impõe. o resto são histórias que nos contaram, mas nas quais é urgente repor a verdade: não, não há quem faça milagres por nós!

daqui

domingo, 13 de março de 2011

no branco, pode começar tudo de novo



éramos muitos, mas ainda não éramos todos, sobretudo não éramos UM. a convocatória era de protesto e, quando se convoca uma 'geração à rasca' para içar as bandeiras do protesto, a união é impossível - digo eu... ninguém se une  verdadeiramente quando a energia é a da zanga, a da carência, a da falência. ninguém pode encontrar soluções enquanto não se assumir como parte do problema, ninguém pode pedir que, de fora, venha quem resolva o mal-estar que grassa dentro de cada um de nós. criamos carrascos sempre que vestimos a máscara da vítima, 'desempoderamo-nos' de cada vez que delegamos nos outros o poder de mudarem as nossas vidas, há anos que pactuamos com este sistema, tomando a democracia por um direito e, tantas vezes, esquecendo os nossos deveres. votamos, ou não? e há anos que votamos nos mesmos, alienando a possibilidade de não eleger 'mais do mesmo', se votarmos em branco. ou ainda há quem não saiba que, num cenário em que um terço dos eleitores votem em branco, as eleições teriam de repetir-se com 'sangue fresco' nas listas, ou então passamos a vida a esquecer-nos.

ontem, na Av. da Liberdade, ninguém era livre, afinal e 'à rasca' significava que há gerações e gerações que temos medo. com 'medo de existir', como tão bem já explicou o José Gil, o povo português dorme à sombra da neblina e da saudade, sonhando com as caravelas quinhentistas da conquista, mas enjoando com a simples visão do balanço do mar alto. sim, somos de brandos costumes, fazemos revoluções com cravos, entoamos o esplendor de Portugal afinadinhos, levamos a vidinha a prestações, damos crédito às promessas do pai Estado Providência, acreditando que tem mais é de nos levar ao colo, de nos subsidiar a insatisfação, o desalento e a preguiça, validamos esta sensação de estar em dívida, de cada vez que contraímos um empréstimo para podermos possuir mais qualquer coisa e onde é que isto nos leva? a mais do mesmo, digo eu...

se a precariedade de que tantos, ontem, se queixavam for tomada por castigo, ficaremos ainda mais 'à rasca'. se a 'culpa' continuar a ser dos outros, não passaremos mais de vítimas. se insistirmos na eleição de predadores, seremos sempre a 'caça' fácil. soluções? acredito que cada um será capaz de encontrar a que lhe sirva, quando finalmente assumir que está em crise não por causa dos corruptos, não por culpa dos políticos, não devido à falência do sistema, ao colapso das instituições, à ganância dos lobbistas, à prepotência dos 'mandões'. velhos padrões não podem mais ditar o rumo, há que mudar o paradigma. dormir envolto em neblinas, com saudades do passado e descrença no futuro é criar um presente envenenado. desejar TER - abonos, condições, facilidades, empregos estáveis, carro novo, um grande plasma, regalias - em vez de SER - humilde, empreendedor, criativo, tolerante, solidário - é estar a cair num logro: que o mundo mude para merecermos o nosso lugar ao sol, sem que para isso tenhamos de mudar e de sair do comodismo da sombra.

fossemos nós um país de chão minado, como Angola, um país onde se cai morto na rua e ali se fica, como na Índia, um país de ditadores, como o Egipto ou como a Líbia ou tantos outros, um país estilhaçado a cada esquina, como o Iraque, um país morto de fome, com a Somália, um país sem liberdade, como a China, um país de fanatismos, como o Afganistão, um país murado de lamentações, como Israel, um país que ainda não saíu dos escombros, como o Haiti, um país amordaçado, como o Tibete... fossemos nós outro país, que não pacífico e à beira-mar plantado e com Lys a abrir-nos um portal e o coração para o mundo novo, e eu percebia que nos manifestássemos em protesto.

assim, sugiro que nos juntemos antes em celebração. um milhão, dois milhões, três milhões... a descer pelas avenidas, todos de branco como um dia já fizémos por Timor, hasteando panos de todas as cores, em vez de slogans ridículos de auto-comiseração, entoando um hino novo em que o esplendor de Portugal já não seja esse queixume de uma geração à rasca, mas um coro em que cada um assuma finalmente o compromisso de dar voz ao coração e de fazer a sua parte.

ontem, cá em baixo, na avenida, estava o povo. mas, um pouco mais acima, a Liberdade abria as asas... quase diria que a pedir que elevássemos o tom e as intenções, que assumissemos de vez que somos a favor do voo, que somos UM, e não mais uns contra os outros, desejando, com verdade, ir ao encontro de nós mesmos.

sexta-feira, 11 de março de 2011

mandala do Despertar


deitei-me na relva enquanto as minhas filhas andavam de bicicleta. ao meu lado, a Luísinha tinha estendido um pareo colorido, a Madalena um outro aos quadrados pretos e brancos, o meu era azul. já lá tínhamos estado na véspera e, enquanto as duas andavam de bicicleta, eu tinha ficado estendida no mesmo pedaço de relva - nenhuma das três tinha levado pareos - a apanhar sol e a encher a cabeça de nuvens. ontem, estendi-me ao sol apenas por breves minutos e, assim que senti que as nuvens chegavam de novo, apeteceu-me 'girar'. havia flores de todas as cores a jorrar dos canteiros, mas optei pelas que cresciam, selvagens, na margem de um pequeno ribeiro. 
escolhi o pareo da Luísa, por ser o mais colorido, como pano de fundo e comecei a dispor folhas e pétalas em círculo. estava vento, o que em muito dificultava a tarefa de permanecerem na roda, e então reparei nuns pequenos espigões que brotavam, avulso, da relva e usei-os como alfinetes. perfeito! o vento soprava na mesma, mas não desfazia a mandala.

quando a acabei, chamei-lhe 'mandala do Despertar'. estava a sacudir o pareo e a preparar-me para me ir embora, quando o telefone tocou. era uma amiga a perguntar se eu não queria ir com ela ouvir o João Motta falar do movimento 'Despertar Portugal', às oito da noite, no Instituto Macrobiótico.
já tinha tido um convite para o ir conhecer, há dois meses, talvez, mas na altura não tinha sido possível. já tinha, ontem mesmo, antes ainda das bicicletas e da mandala, pensado que gostaria de ir às oito da noite ao Chiado, mas a intenção tinha ficado suspensa e sujeita ao 'andamento' da agenda. 

às dez para as oito, estava na Rua Anchieta à espera da minha amiga, quando se aproximou de mim um rapaz, que depois soube chamar-se Tiago. trazia uma revista Ginko na mão e um sorriso estampado na cara. disse-me olá e exclamou
 há sincronicidades incríveis, não há?
ri-me e disse que sim, achando que a sincronicidade era ele ter encontrado na rua alguém que  vira numa revista, mas era mais do que isso, como me explicou logo a seguir.
 o João Motta esteve a ler esta sua entrevista hoje à tarde e manifestou o desejo de a conhecer... por acaso, também estava lá o seu cunhado Miguel, a quem pediu o contacto... e agora,  e sem saber nada disto, você está aqui! é incrível, não é?
tão incrível como os espigões que encontrei há pouco na relva e que permitiram que o vento não desfizesse a mandala, pensei, mas não disse, e ri-me de novo.

quando entrei no Instituto Macrobiótico, o João estava à porta e fez um ar estarrecido assim que me viu. não sabia que o Tiago me tinha encontrado na rua, mas confirmou o que me tinha dito, quando exclamou
 você veio mesmo, é incrível!
e abraçou-me como se fossemos já velhos amigos.

de tudo o que ouvi e senti a seguir, sobre o movimento Despertar Portugal, retive as sincronicidades para as quais nem sempre estamos despertos, sobretudo quando adormecemos na relva e deixamos que as nuvens nos tapem o céu na cabeça.

é 'crível', não é? e é precisamente por crermos que estamos despertos.

quinta-feira, 10 de março de 2011

quando acordei, o anjo dormia



levantei-me para ser como ele e só então reparei numa enorme asa negra que parecia colar-se ao meu peito, embora irrompesse das costas e me pesasse na omoplata direita. projectava uma sombra gigante no chão, já não parecia feita de espuma, mas de alcatrão, era áspera e era só uma. uma só asa, que estranho, e não o par necessário para o voo imortal dos humanos. 
ensaiei um esvoaço e caí no negrume e o meu anjo pareceu acordar nessa altura para me chamar a atenção de que podemos sempre escolher se voamos para baixo ou para cima e eu então perguntei
  também há anjos maus?
mas ele dormia de novo e não respondeu à pergunta. mergulhei mais a fundo no escuro, reparei que uma asa chegava para tanto, chegava para tudo, em vez do voo imortal dos humanos era a mortalidade dos anjos o que eu experimentava nessa manhã e repeti a questão
  também há anjos maus?
no fundo calaram-se os cânticos e tudo o que ouvia era o medo descendo às entranhas do corpo e um coro que entoava a escuridão em uníssono 
  apaga-te, porque morreste para seres como nós
e brindavam com sangue à minha descida aos infernos e já não se avistavam laivos de espuma em parte nenhuma e o ruído que cada asa negra exalava era o eco aflitivo do som do abismo, repetindo o convite à vertigem, à queda, ao mergulho no esquecimento da luz
  apaga-te, porque morreste para seres com nós.
sem oferecer resistência, deixei-me cair e, caindo, deixei que morressem em mim a bondade, a ternura, a amizade, o amor, a harmonia e a paz. caindo, deixei que me contagiasse o negrume e entreguei-me ao abismo. mas nunca mais batia no fundo do fundo, parecia que o fundo do fundo não tinha fundo, afinal, e que quanto mais fundo caía, mais fundo queria cair e maior era a vertigem. se aquilo era a morte, era diferente de tudo o que tinha previsto, se apagar-me era assim, era porque afinal havia anjos maus e eu era um deles, um desses anjos caídos de que rezam as histórias dos homens, quando não sabem o que hão-de fazer ao desamor que vêem no mundo e tentam explicá-lo de acordo com o desamor que sentem neles próprios. e foi nesse momento, nesse exacto momento em que quis, também eu, explicar o desamor que vejo no mundo com o desamor que sinto em mim própria que cheguei ao fundo do fundo e que parei de cair.
acordado, o meu anjo esperava por mim e trazia com ele o par branco para a minha asa negra. juntos empreendemos então, e de novo, o voo de regresso lá acima, ao mesmo tempo que ele respondia à minha pergunta
  não há bons nem maus, tudo faz parte da mesma espiral.

quarta-feira, 9 de março de 2011

só tu e eu



e agora viro-me de frente para que me vejas. pareço-te um anjo? é evidente que não! ninguém parece aquilo que não é e não há nenhuma excepção. não é sequer de estranhar que a grande diferença entre um anjo e uma pessoa seja o facto de a maior parte de uma pessoa estar do lado de fora e a de um anjo do lado de dentro. e sim, vistas do lado de fora, talvez sejam de espuma, as asas que invento e que trago coladas às costas, talvez seja apenas ruído o que faço de cada vez que me ensaio em esvoaços, talvez me mascare de todas as vezes que escrevo, talvez nem sequer sirvam para nada as palavras que ponho a boiar no néon, crendo que caem no branco para preencher algumas lacunas da vida, ou dar eco aos anseios de tantas outras pessoas.

e, no entanto, se me visses apenas do lado de dentro, se te esquecesses da espuma e fizesses silêncio, percebias que aquilo que ponho a boiar flutua muito para além dos contornos das letras e que há palavras que me atravessam sem eu sequer me dar conta de que as estou a escrever.
que tenho esse dom, visto do lado de fora, pode até soar a vaidade. a pessoa que sou até tem a mania que escreve tão bem e acalenta no ego o desejo de ser: publicada, lida, aplaudida... e se com isso até for capaz de ganhar a vida e alimentar a família, tanto melhor! mas é por dentro, é de dentro que a tinta escorre e não mancha, é da voz que me habita que trago as visões, é a alma quem, metaforicamente, me recria todas as possibilidades de SER nesta existência que escolhi, desta vez, ter forma humana.

e então lá voltamos a este mal entendido de sempre... quem é esta que escreve e que depois, tantas vezes, nem sequer age em conformidade? quem é esta que diz tantas coisas e que, afinal, não faz nem metade? esta, virada de frente, à vista de todos, com asas de espuma coladas às costas e ruidosa nos seus muitos esvoaços, é a pessoa. esta, virada de frente, à vista de alguns, arrancando a carne das asas e desejando voar em liberdade, é o anjo.

inconsciência, para mim, é ter um dom e não o pôr ao serviço dos outros. inconsciência é negar a parte de nós que é pertença do todo. inconsciência é não partilhar o que sinto, temendo que alguém denuncie que, afinal, eu não sou o que escrevo. inconsciência é nascermos para sermos anjos e contentarmo-nos em sermos apenas pessoas. o meu lado de fora é, sem dúvida, humano. mas o meu lado de dentro é, seguramente, divino. e se nem sempre consigo cruzá-los para que sejam um só é porque, à semelhança de tantos, vim experienciar a dualidade em mais uma viagem terrena.

só tu e eu

disse-me o anjo.
há muito tempo que não o sentia tão perto, não porque não esteja sempre por perto, mas porque tantas vezes me esqueço da sua presença, atarefada que estou a dar conta da vida e dos mil afazeres que sempre me esperam. desta vez, no entanto, não lhe abri a espreguiçadeira, não lhe trouxe uma manta, não lhe enchi o copo de vinho e brindámos antes com a água da fonte.
tchim tchim
disse o anjo.
encostei-me ao seu corpo e bebi-o de um trago, na esperança de que me nascessem asas nos braços e pudesse abraçá-lo, já não como humana, mas com a leveza própria dos anjos. o anjo sentiu os meus braços de carne e dotou-os de penas e de novo me deu a beber a água da fonte, desta vez directamente na alma, ao mesmo tempo que me embalava e que me dizia, baixinho
ilumina-te, porque nasceste para ser como eu.
mostrei-lhe os meus braços de carne, que só ao de leve as suas penas cobriam, o meu corpo pesando de encontro à sua leveza divina, as mãos de onde pendiam tantos gestos humanos, o coração a bater-me no peito sem rumo e sem ritmo e ele, sempre benigno, aspergiu-me de novo com a água da fonte e de novo entoou, muito baixinho, a mesma canção de embalar com que me recebeu, quando eu estava a chegar
ilumina-te, porque nasceste para ser como eu.
e eu, que de milagres só pareço saber aquilo que me contam os homens, mostrei-lhe os vincos das rugas, as dobras da pele onde se acumulam poeiras, o esgotamento dos músculos, todas as células que em mim já morreram, o cansaço entranhado nas veias e ele rindo me mim, rindo para mim como quem sabe que apenas lhe mostro o lado mortal de tudo o que sou porque não tenho coragem de me exceder, transmutar, transcender e renascer para, enfim, ser como ele.
ele, que de milagres sabe tudo o que há para saber, mostra-me então o que em mim nunca morreu e é um tamanho tão grande de amor que jorra da fonte que, desta vez, me sinto incapaz de brindar seja ao que for. mesmo assim, ele enche-me a alma e é um sopro que sinto a razar-me quando ele me sussurra,
bebe, bebe porque nasceste para ser como eu.
e eu, que ultimamente tenho evitado tantos milagres, bebo-o de um trago e abraço-me às minhas asas, que ainda sinto de carne, é verdade, mas que sei que hão-de saber renascer para serem um dia iguaizinhas às dele.


terça-feira, 8 de março de 2011

às mulheres da minha vida ♥


obrigada  
obrigada obrigada obrigada  
obrigada obrigada  

e a tantas outras que HOJE estão na minha vida ou que por ela passaram um dia...


e ainda a mais umas quantas: que mesmo sem links virtuais, estão ligadas ao meu


liberdade, liberdade ♫

abre as asas sobre nós

há quanto tempo ali estava, nem ela sabia dizer. apenas que suspirava, de cada vez que, voando, embatia nas grades,
  ah, se ao menos eu fosse livre!
voava em círculos pequenos, a maior parte não dando sequer para abrir a totalidade das asas, o voo sempre aquém das alturas, os movimentos razando somente a redoma de arame, e todos os dias o mesmo suspiro
  ah, se ao menos eu fosse livre!
a liberdade que intuía, e pela qual suspirava, estava sempre do lado de fora e, lá fora, nunca havia ninguém que parecesse disposto a abrir-lhe a gaiola para que pudesse voar mais além. confinava-se, então, ao espaço apertado do seu cativeiro e as voltas que dava sobre si própria conduziam-na sempre ao mesmo desejo
  ah, se ao menos eu fosse livre...
em dias de menos alento, quando nem forças tinha para esvoaçar, suspirar, desejar, deitava-se, quieta, na sua prisão e ruminava impropérios. estranhamente, o exercício parecia trazer-lhe o conforto de que não era, afinal, culpada de nada, mas uma vítima das circunstâncias, fossem elas quais fossem. silenciosamente, vingava-se. não sabia ao certo de quem nem do quê, mas a ilusão de que os responsáveis pelo seu cativeiro seriam, um dia, punidos, acalmava-lhe as ânsias. caía então num estado dormente de auto-comiseração e quase sentia prazer em lamber cada uma das feridas que,  sangrando, recusavam a cura.
havia também outros dias em que, mergulhada numa euforia que fabricava a partir da matéria dos sonhos, se via a voar, finalmente, liberta de tudo e de todos. a gaiola era o mesmo espaço apertado de sempre, os círculos nunca maiores nem mais amplos e, mesmo assim, conseguia fazer com que parecessem espirais, quando, de olhos fechados, se imaginava do lado de fora das grades, rumo ao cume dos céus.
depressa, porém, regressava desses esvoaços dementes, dando-se conta de que não fora, afinal, a lado nenhum e então o desalento voltava, desfazia-se em melancolia e tristeza, suspirava de novo
 ah, se ao menos eu fosse livre...
 
 
 
olhando de fora, não só para ela, mas sobretudo para mim, diria que ambas são livres. é livre a que escolhe embater nas grades de arame e livre a que descobre que a porta se abre por dentro. é livre a que se entrega aos suspiros, aos esvoaços em círculos, à dormência e às feridas e livre a que cumpre os desejos, a que ousa atingir as alturas, a que, acordada, se cura.