disse-me o anjo.
há muito tempo que não o sentia tão perto, não porque não esteja sempre por perto, mas porque tantas vezes me esqueço da sua presença, atarefada que estou a dar conta da vida e dos mil afazeres que sempre me esperam. desta vez, no entanto, não lhe abri a espreguiçadeira, não lhe trouxe uma manta, não lhe enchi o copo de vinho e brindámos antes com a água da fonte.
tchim tchim
disse o anjo.
encostei-me ao seu corpo e bebi-o de um trago, na esperança de que me nascessem asas nos braços e pudesse abraçá-lo, já não como humana, mas com a leveza própria dos anjos. o anjo sentiu os meus braços de carne e dotou-os de penas e de novo me deu a beber a água da fonte, desta vez directamente na alma, ao mesmo tempo que me embalava e que me dizia, baixinho
ilumina-te, porque nasceste para ser como eu.
mostrei-lhe os meus braços de carne, que só ao de leve as suas penas cobriam, o meu corpo pesando de encontro à sua leveza divina, as mãos de onde pendiam tantos gestos humanos, o coração a bater-me no peito sem rumo e sem ritmo e ele, sempre benigno, aspergiu-me de novo com a água da fonte e de novo entoou, muito baixinho, a mesma canção de embalar com que me recebeu, quando eu estava a chegar
ilumina-te, porque nasceste para ser como eu.
e eu, que de milagres só pareço saber aquilo que me contam os homens, mostrei-lhe os vincos das rugas, as dobras da pele onde se acumulam poeiras, o esgotamento dos músculos, todas as células que em mim já morreram, o cansaço entranhado nas veias e ele rindo me mim, rindo para mim como quem sabe que apenas lhe mostro o lado mortal de tudo o que sou porque não tenho coragem de me exceder, transmutar, transcender e renascer para, enfim, ser como ele.
ele, que de milagres sabe tudo o que há para saber, mostra-me então o que em mim nunca morreu e é um tamanho tão grande de amor que jorra da fonte que, desta vez, me sinto incapaz de brindar seja ao que for. mesmo assim, ele enche-me a alma e é um sopro que sinto a razar-me quando ele me sussurra,
bebe, bebe porque nasceste para ser como eu.
e eu, que ultimamente tenho evitado tantos milagres, bebo-o de um trago e abraço-me às minhas asas, que ainda sinto de carne, é verdade, mas que sei que hão-de saber renascer para serem um dia iguaizinhas às dele.
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