segunda-feira, 4 de abril de 2011

espelho meu, espelho teu


olho-te e vejo-me. olhas-me e vês-te. pode até ser que seja - só e ainda - um conceito mental que não consigo transpor para além das superfícies brilhantes do vidro, que me custe ainda a aceitar que a minha mãe a queixar-se sou eu a queixar-me, que a minha filha a ser malcriada me esteja a mostrar a minha má criação, que aquela senhora aos gritos na rua, que não conheço de parte nenhuma, mas que me chama a atenção, me esteja afinal a chamar a atenção para os meus próprios gritos. talvez me seja ainda difícil rever-me na zanga do outro quando se zanga comigo, pôr-me na pele de um mentiroso, de cada vez que não assumo as minhas mentiras, dar-me conta de que a sombra que o outro projecta, afinal, é a minha. 

e, no entanto, não tenho uma dúvida de que, quando olho para ti - sejas tu o que fores e quem fores -, não tenho uma dúvida de que estás a espelhar o que também trago em mim. não fosse assim e nada faria sentido. viveríamos todos de caras viradas para uma parede, não seria suposto sequer cruzarmo-nos uns com os outros, cada um ficaria na sua redoma, sem se rever em coisa nenhuma, sem nunca tomar consciência de que é exactamente o mesmo que todos os outros.

também não tenho nem uma dúvida de que, quanto mais tu 'mexes' comigo, seja na luz, seja na sombra, mais evidente se torna que há qualquer coisa a ser-me mostrada muito para além das superfícies brilhantes do vidro e que é urgente que me conecte com ela. e, sim, é sempre mais simples quando é a luz que há em ti que se espelha, e mais complicado quando é a sombra quem me devolve os fantasmas que também eu alimento. é  sempre mais doce e mais calmo quando te amo em mim e mais violento e mais duro quando me odeio em ti.

e, sim, tudo faz parte. tu seres o meu espelho, eu ser o teu espelho. até quando estamos virados de costas, evitando o que a superfície brilhante dos vidros insiste em mostrar-nos, espelhamos o que das tuas costas existe nas minhas, o que das minhas costas existe nas tuas. e podemos dar todas as voltas,  virar do avesso gestos e poses, podemos, até, partir todos os espelhos que nos obrigam a tomar consciência de que eu sou tu e tu és eu. nem que seja em fragmentos, nem que seja em estilhaços, haverá sempre uma imagem de mim que tu me devolves, haverá sempre uma imagem de ti que eu te devolvo. e essa é a magia dos espelhos: é tu tomares consciência de que te vês quando olhas para mim, é eu tomar consciência de que me vejo quando olho para ti.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

aqui, que ninguém nos ouve...



diz um amigo meu que, no Universo, não há privacidade. e, no entanto, todos nós acreditamos que fazemos certas coisas às escondidas, sobretudo aquelas coisas que nem sempre são as 'certas'. acreditamos que, em surdina e no recato das cortinas, nenhum dos nossos segredos será um dia descoberto e até nos gabamos disso, de ter segredos que ninguém vai descobrir se os mantivermos fechados a sete chaves. acreditamos que os nossos lugares secretos estão resguardados dos voyeurs e que a nossa vida íntima só a nós nos diz respeito. acreditamos que, se nunca ninguém souber que enganamos o vizinho, passaremos por honestos. se ninguém denunciar que batemos nas crianças, passaremos por bonzinhos. se ninguém desconfiar que traímos a mulher ou o marido, seremos parceiros fiéis. se ninguém nos apanhar em flagrante nalgum vício, tiraremos mais partido das virtudes. se ninguém vier espiar as nossas falhas, seremos bem sucedidos.

não creio que seja verdade e tendo cada vez mais a concordar que o meu amigo tem razão. aqui, há  sempre 'alguém', afinal, que está a ouvir, há sempre 'alguém' que está a ver, há sempre 'alguém' que presencia cada acto, cada gesto, sobretudo os que fazemos às escondidas, na presunção de que ninguém vai descobrir que os cometemos. há sempre 'alguém' que está presente,  até no mais simples pensamento ou omissão, que testemunha a energia que se gera à sua volta e... nunca é 'alguém' de fora. 

nós nunca estamos sozinhos, nem quando não existe mais ninguém ao nosso lado. fazer coisas às escondidas é, por isso, um logro imenso em que caímos, todos nós, do tanto que nos habituámos a acreditar que o julgamento vem de fora e que, se cuidarmos muito bem de uma mentira ou de uma máscara, a transformamos em verdade. e eu, mais uma vez, concordo com o meu amigo e acredito que é só mais uma ilusão da nossa querida humana idade e que não há, no Universo, nem um único momento dessa coisa a que chamamos 'a nossa privacidade'.

mesmo que ninguém nos veja a roubar, a bater ou a agredir quem quer que seja. mesmo que ninguém descubra que enganámos a mulher ou o marido e as amantes e os amantes sejam cúmplices perfeitos. mesmo que ninguém nos apanhe a fumar charros às escondidas ou a injectar nas veias. mesmo que ninguém nos espie e denuncie as nossas falhas. mesmo que ninguém possa provar que desejámos alguma espécie de vingança a alguém que odiamos, ou que dissemos mal da amiga ou da prima ou do cunhado... nós nunca estamos sozinhos!

há uma lei no Universo - em que acredito - que diz que tudo aquilo que damos nos será um destes dias devolvido. mas, para que a lei seja cumprida, tem de haver omnipresença. e quem, se não nós mesmos, pode estar omnipresente ao longo de toda uma vida e, até, para além dela? quem, se não cada um de nós, pode ser esse 'alguém' que presencia cada acto, cada gesto, omissão ou pensamento? ou vivemos iludidos e às escondidas de nós próprios, ou tomamos finalmente consciência de que não há, realmente, nenhuma privacidade que possamos defender, resguardar ou pôr a salvo.

aqui, há sempre 'alguém': que nos ouve e que nos vê. podem chamar-lhe o que quiserem - Deus, Eu Superior, Alma, Consciência... 'alguém' omnipresente, de sempre e para sempre e que nunca vem de fora, julgar, denunciar ou apontar coisa nenhuma, mas que é em nós a prova viva de que não podemos nunca, nem sequer por um minuto, fazer nada às escondidas de nós mesmos.