domingo, 26 de junho de 2011

quanto vale uma sombra?

em outubro do ano passado, escrevi os dias da sombra. depois de anos e anos a rabiscar dias de luz, histórias de fadas e frases lindinhas, talvez tenha enfim sentido merecer resgatar à penumbra a minha parte de ser que resistia, com todas as forças, esforços inúteis e muitas dores, a mostrar-se como também é: sombria, tantas vezes montada numa vassoura de bruxa a criar poções venenosas - para si e para os outros -, praguejando contra as injustiças do mundo que denunciam a máscara 'lindinha' com que se enfeita e se defende dos outros.

garanto-vos que tem sido duro. duríssimo, mesmo! mas se é verdade, como mais uma vez diz o Emídio, que 'regra geral, a nossa sombra ganha poder até por volta dos quarenta anos', altura em que 'tem poder suficiente para começar a manifestar-se', tudo chegou para mim na altura em que era certo chegar. e então estou muito grata por ter dado por isso, por mais duro que esteja a ser o processo.

já aqui disse que sou dependente de uma série de coisas e a relação amorosa é só uma delas. desde sempre me lembro de ter namorados e, mais do que isso, nunca acabava com um sem ter já o próximo em vista. nalguns aspectos, serve-me que nem uma luva, a máscara da sedutora. mas é duro admitir, sem paliativos, que sou 'perigosa, venenosa, perversa', porque o meu 'ataque está mascarado de amor'. é reconfortante estar a descobrir que a cura é estar disposta a sentir o vazio e a compreender que aquilo que procuro está aqui, dentro de mim.

outro mito que alimentei - ainda nas relações amorosas - foi o da fidelidade. mentia com todos os dentes que tinha na boca, de cada vez que jurava que era fiel. não só não era fiel aos 'meus' namorados - porque estava com um, mas sempre na mira do próximo - como, acima de tudo, não era fiel a mim mesma. estranhamente, atraí dois homens fiéis e casei-me com eles. e, no entanto, passei grande parte do tempo a traí-los e, mais uma vez, a trair-me a mim mesma. e 'trair' podem ser muitas coisas! não, não fui para a cama com mais ninguém enquanto estive casada com nenhum deles. mas vivi muito tempo obcecada por outra pessoa, durante o primeiro casamento, e aceitei entrar no segundo, ao mesmo tempo que garantia a mim mesma que 'não era ele'.

se alguma coisa abona a meu favor - e se é que é realmente preciso que abone - tanto a um como a outro contei a verdade. isso alivia? não sei. sei que, quando o pai dos meus filhos mais velhos morreu, senti que nada tinha ficado por conversar ou por dizer entre nós. e que talvez seja por isso que hoje, entre os dois, existe este amor que sinto tão vivo, apesar de, humanamente, ele já ter morrido. sei que, ao pai das minhas filhas mais novas, sempre lhe disse: 'podes ficar, mas não és tu.' hoje entendo que o que eu lhe dizia era 'vou ficando, mas não sou eu.' hoje somos grandes amigos, e isso é tão bom! porque me permite dizer-lhe, como lhe disse há dois ou três dias, 'desculpa por te ter traído sempre.'

foi então necessário, quarenta e tal anos vividos, olhar para a infidelidade de frente, sem filtros. e assim surgiu a traição que mais cruamente doeu, a que nem nunca me passou pela cabeça que fosse possível, a que na minha mente ainda rotulo de 'feia', 'injusta', 'nojenta', 'prepetrada às escondidas', 'mantida em segredo' e... 'dupla'!
e porque a verdade tinha de vir ao de cima, caso contrário não poderia vivê-la, saltou da sombra outra Inês que sempre abafei com todas as forças, e que sempre fiz por calar com muita vergonha: a controladora, a que espia a vida dos outros para os apanhar em falta, a 'cusca'. aliada à Inês que é atenta e que apanha aqui e ali as peças de um puzzle, foi fácil montá-lo. difícil, agora, é conseguir desmontá-lo. e a primeira permissa a ter em conta - e lá volto eu ao Emídio e à sua forma gentil de nos apontar caminhos para podermos sair das nossas esquizofrenias -  é que os meus padrões de moralidade e de rectidão não são sempre os mesmos padrões de moralidade e de rectidão por que os outros se regem. nem têm de ser. nem posso fazer nada para que sejam. provo isso a mim mesma sempre que o tento, porque entro em guerra.
se aqui o 'porquê?' é inútil, o 'para quê?' é transformador: para eu ser fiel a mim mesma! o que significa que o próximo por quem sempre esperei sou eu mesma: numa versão que, a cada instante, pode ser corrigida e melhorada. e me permite ser 'obreira' e criativa a tempo inteiro, porque nunca há-de estar pronta: haverá sempre uma próxima Inês a ser conquistada!

sim, querido Emídio, 'este crescimento da nossa humanidade irá pedir de nós muito mais do que aquilo que se encontra dentro dos limites da nossa zona de conforto. mas irá garantir a nossa realização plena como seres humanos, seres espirituais e seres completos.'

e por isso à pergunta 'quanto vale uma sombra?' eu respondo: vale ouro! cada sombra que olhamos de frente vale ouro! vale bem a dor e o esforço de o escavarmos do fundo das nossas entranhas. de o resgatarmos, já não mais embaciado pela penumbra, mas brilhando em tudo o que somos.


2 comentários:

  1. olá . estava a ler o que escreveste e identifico-me nesta busca, nunca assumi nenhum compromisso sério apesar de a busca ser uma constante desilusão . e a sombra é necessária para que a luz possa sempre renascer . é o que somos feitos, e até se "achar a pessoa certa" muitas incertas passam por nós creio que a prepararmos a sua chegada .
    quem sabe a encontres ou não mas, custa mais encontrar-nos e esse é o melhor de tudo

    um beijo
    :)

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  2. a pessoa certa és tu. prepara a tua chegada :)

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