segunda-feira, 4 de julho de 2011

deixas-me entrar?


não sei bem em que altura fechamos as portas. mas que as fechamos, não tenho uma dúvida. uma por uma, escondemos as feridas e trancamos as sombras, achando que assim não corremos mais riscos, que ficamos a salvo do perigo de virem comer-nos a alma ou pedir-nos satisfações por não lhes termos dado colo, importância, atenção. nem nos apercebemos como vão exalando bolor, humidade, como vão conseguindo escapar-se através das pequenas frinchas das portas, como poluem o ar à nossa volta e nos sufocam, tornando opaca a visão, enchendo de névoa as memórias, para que, quando voltamos a elas, ou quando alguém nos faz o favor de as trazer de volta ao presente, não sejamos capazes de identificar de onde vêm.

cremos que assim é mais fácil. aparentemente, é mais fácil. o que seria de nós se, de cada vez que nos cortamos, que nos arranhamos ou que ficamos com uma nódoa negra num braço, fosse preciso muito mais do que um penso, muito mais do que estancar o golpe com água oxigenada? o que seria se uma pomada fosse insuficiente e se cada nódoa negra no corpo nos obrigasse a sentir como a sombra lateja cá dentro?

hoje sei que será um alívio! quando de facto formos capazes. quando tivermos coragem de esventrar cada golpe até ao seu âmago, quando nos arranharmos a ponto de descobrir onde foi que roçámos a pele pela primeira vez e que ardeu, onde foi que se deu esse primeiro embate que nos moeu a carne por dentro... iniciamos o processo da cura. 

dizem-nos que é precisa muita coragem para o fazermos e eu compreendo. quem é que perante uma crosta, aparentemente sarada, se atreve a pegar numa faca para descobrir que a ferida, afinal, purga no osso? quem não prefere o conforto de uma porta fechada à náusea da humidade e do bolor que vai sentir quando a vir escancarada? quem é que não acha que é preferível esquecer a querer descobrir a verdade?

e a verdade é que a dor que sentimos agora já foi há que tempos. e há que tempos que queremos esquecê-la, em vez de curá-la. há anos e anos e anos que passamos pomadas, fazendo desaparecer da superfície as manchas que alastram por dentro. há anos e anos e anos que pômos pensos nas feridas, para não as vermos sangrar, achando assim que estancamos as hemorragias da alma. 
e eu, que sempre me achei corajosa, vejo-me agora a querer recusar a entrada à Inês pequenina que, ferida de morte, me pede
deixas-me entrar?

e, se eu não deixar, ela não força. é pequenina e já sabe que, se medir forças comigo, vai-se magoar. acredito até que não passe da soleira da porta, mas já sei que vai ficar lá. vou ouvi-la a chorar e posso afastar-me e talvez ela chore um pouco mais alto e talvez eu me afaste ainda mais. e não sei qual é a dor que dói mais: se a da que chora, se a da que não quer ouvi-la a chorar. e da utilidade que tem ou não tem ficarmos em pranto nos braços uma da outra ainda não sei... mas quero descobrir e, para isso, tenho de a deixar entrar. e de lhe dizer que é muito bem vinda.

1 comentário:

  1. o nuno pequenino ouviu-te e sentiu-se escondido pela leitura que o nuno grande fez do teu texto.
    obrigado inês
    nuno

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