quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

os dias da raiva


primeiro a Tunísia, depois o Egipto, agora o Iémen, a Síria... nada de novo. desde que o mundo é mundo que existe o conflito, o ódio, a guerra, o podre poder instituído, a manipulação, a ganância. não são mais sangrentos os dias de agora do que eram há séculos, o que se passa é que, agora, o sangue escorre à velocidade da técnica e todos o vemos, servido ao vivo nos telejornais, em directo na net, jorrando de feridas que, afinal, nos pertencem a todos, são nossas e doem. não são mais violentos os cocktails molotof que explodem hoje nas ruas do Cairo, do que as bombas que nos anos quarenta destruíam Londres, Berlim ou Paris, ou do que as espadas templárias que trespassavam os índios, ou do que as fogueiras onde ardiam judeus...
a esperança de que a humanidade evolua a caminho da paz é, provavelmente, tão vã como acreditar que, um dia, o bem predominará e que tudo se irá, enfim, acalmar e compor  num cenário de luz. já não sei onde li que, 'por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição'. recentemente, li o mesmo por outras palavras, num livro chamado 'a Luz e a Sombra'. não há como apenas expandir e criar. destruir e extinguir fazem parte da mesma espiral a que chamamos de cosmos, o movimento é contínuo. planetas, estrelas, galáxias inteiras rebentam, renascem, explodem, retomam a dança, desfazem-se em pó, recriam do nada. assim somos nós, seres humanos, à imagem e semelhança de tudo o que existe. 

dizia alguém noutro dia que não acredita que exista maldade no ser humano. foram já muitos os que defenderam a mesmíssima tese: que nascemos benignos e puros, mas nos tornamos maus com a experiência do mundo e à custa de feridas de infância que, eventualmente, nunca sabemos sarar. não sei se é assim. não faço ideia se esta é a era em que transmutaremos a humanidade para, enfim, co-criar apenas amor, à imagem do deus que nos dizem que somos. mas o que me espanta, o que de facto me deixa perplexa, é o confronto com a minha indiferença a estes dias de raiva. ou, talvez, a consciência de que a revolta perante guerras alheias, na maior parte das vezes em territórios distantes, ou vem bater em algo que todos nós transportamos, ou se resigna a ser puro fingimento.

recordo a invasão de Bagdad, há uns anos atrás, e de como avidamente seguia as notícias e acompanhava cada ofensiva e me insurgia contra a maldade e a injustiça de existirem homens assim, tão levianamente capazes de se matarem por simples ganância. como era fácil pôr-me de fora e acreditar que tudo aquilo não estava, também, dentro de mim. dividir os bons e os maus e pôr-me do lado que me convinha e que, claramente, era o dos bons. acusar este e aquele de não serem suficientemente evoluídos para perceber que a violência não é um caminho. criticar Mubaraks, Sadams, Bin Ladens, al-Assads ou seja quem for é facílimo. difícil, difícil, quase penoso, é mergulhar nesta vidinha que todos levamos e, à nossa pequeníssima escala, descobrir o traidor, o violador, o ditador e o assassino que também nos habita.

sim, imagino-vos a torcer o nariz, a fugir dessa ameaça que a sombra projecta, eventualmente a pensar 'esta gaja passou-se', pacificamente instalados nos vossos lugares de bondade e acreditando que, felizmente, estão longe e a salvo dos dias da raiva. longe e a salvo do sangue que varre as ruas do Cairo e que chega 'embalado' e seco aos ecrãs, longe e a salvo da revolução síria que sobe de tom a cada minuto que passa, longe e a salvo desta loucura que, ciclicamente, toma conta do mundo. desde que não nos diga  directamente respeito, a culpa é sempre dos maus.

e, no entanto, nós - todos nós - somos os maus. e todos nós somos os bons. à pequeníssima escala de cada um, todos temos em nós a luz e a sombra. 'por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição' e não irá nunca ser de outra maneira. é assim que o universo pula e avança, é assim que morre e renasce, a espiral é só uma e a mesma: densa e destruidora nas profundezas, leve e criadora no cume. e não há como um dia quebrar este movimento contínuo e ficar parado, a boiar, num paraíso sonhado de amor. esta não é uma era diferente das outras, mas só mais uma etapa num ciclo infinito de manifestações.

8 comentários:

  1. ... o exterior, longe ou perto... sempre reflecte o que vai dentro!

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  2. 1º - o espectáculo da violência, tão a gosto das culturas decadentes (o circo e os romanos), "o jardim dos suplícios"
    2º - a preocupação, na era da globalização, das consequências para o seu próprio bem estar - o preço do petróleo e a subida exponêncial do combustível e outros bens de consumo.
    3º - falta a experiência da mulher enquanto ser activo (no exterior da família) e social. Quando a exclusão é passado, que pensamento novo, que novos actos se propõe?

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  3. Ines... existe um terceiro polo: nem o bem nem o mal mas a "solidificação" no homem e na história do Real.

    Se a dialética entre a luz e a sombra fosse eterna e incurável o sentido da Eternidade seria nulo: apenas um ecran para a projecção de dualidades obvias. Mas a Eternidade é o berço prospectivo de uma criança perfeita, além do bem e do mal.

    O Homem "novo" não é o Homem "bom"... é NOVO:

    Só a psique humana regista estes opostos. Os arcanjos e os anjos - sem psique - sabem, são, vibram e plasmam uma exactidão do SER que opera acima das sombras e das luzes da moral possível de um tempo , ou de tempos.

    Considerar a dor humana como inevitável, estrutural e dialeticamente "ajustada" é esvaziar o conteúdo da História, da Alma, do Homem e do Tempo. Estes existem para a estabilização de um portal ACIMA, uma "coisa outra", uma singularidade.

    Nem yin nem Yang... mas o TAO.

    Best,
    André Louro de Almeida

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  4. sim, André, mostra-me então essa 'coisa outra', esse portal ACIMA, essa singularidade... fora dos mecanismos e das armadilhas da psique - e de qualquer linguagem, portanto. concordo contigo que nem yin nem yang mas TAO. mas o que é o TAO senão a integração do yin e do yang? e como superas tu a dualidade enquanto estás na matéria?
    a questão não é nem o bem nem o mal. e o terceiro pólo é, porventura, o bem E o mal - integrados. não?...
    visito-te um destes dias e explicas-me? tenho um café combinado com a P. faz tempo.

    best for you two too :)

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  5. Onde há Luz há também a sombra. Em nossa própria psique habita essa dualidade! Excelente texto, que compartilhei em minha página, para que cada um de meus amigos tenha acesso a ele. Sua escrita é fascinante, Inês. Cristina Rios

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  6. ok! ... vamos tomar esse café e falar sobre o terceiro polo... :-)
    Andre

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