regresso |
tu sabes
e eu sei
que não é ainda o regresso. que não basta desempoeirar os pincéis, passar um pano nos tubos das tintas, espremê-los para que cubram as telas de cor e disfarcem as manchas de sombra que ao longo dos anos fomos alimentando e mantendo - e para onde fugimos sempre que o medo nos tolhe - não é possível sermos senhoras de nós em poemas alheios, rimar com quem não rima connosco, pegar em retalhos para com eles compor o vestido do quadro - por mais maravilhoso que o ache e, até, que nos assentaria tão bem, a qualquer uma das duas...
mas só existe uma história e é sempre uma história de amor. o que me leva a sentir, cada vez com mais lucidez, que sofremos à toa. sofremos porque vivemos histórias de apego, mais nada. porque o medo murmura-nos coisas às quais, estupidamente, damos ouvidos. porque, afinal, regressamos a esses lugares onde não queremos voltar, mas de onde não queremos sair. não é estúpido isto?
eu sei
e tu sabes
as voltas que damos sobre nós mesmas e como se tornam perigosas quando são círculos, em vez de espirais, quando o cansaço é tão grande que não ousamos sequer dançar mais acima, elevar uma oitava o tom das canções, quando ficamos reféns das memórias, em vez de as ajustarmos a essa dádiva que é o presente e que está cheio de novos momentos, não é estúpido isto? acreditar que um dia fomos felizes, que um dia seremos felizes, sem perceber que hoje é o dia. é hoje o dia de sermos felizes, não há regresso aos lugares que ontem foram os 'nossos' lugares, por mais que os sintamos ainda habitados, por mais que ainda lá vivam coisas, pessoas, promessas e cheiros, é tudo mentira, a cada regresso vês que é mentira, não está lá ninguém, é hoje e aqui que és senhora de ti, é hoje e aqui que sou senhora de mim, num regresso que é sempre, e também, um cais de partida.
tu sabes
e eu sei
que criar é muito mais do que desempoeirar os pincéis, muito mais do que gastar a polpa dos dedos na escrita, muito mais do que compensar manchas de sombra com jactos de tinta, muito mais do que forçar rimas impróprias. só há uma história e é sempre uma história de amor. e é só essa que há para contar, cantar, esculpir, compor, pintar, co-criar e, sim, viver por inteiro a cada momento, sem apego e sem pena e sem mais ilusões de espécie nenhuma.
Como sempre tão bom de ler...demorei mas voltei...
ResponderEliminarGosto do que escreves e muito!
Beijo grande
Astrid Annabelle