claro. leva-a sempre com ela, a sombra, e é sempre nos dias de sol que a vê mais nitidamente, avançando antes dela, quando o sol lhe bate nas costas, atrás dela, quando a luz a atinge de frente, não tem como fugir-lhe e já nem sequer quer. convencera-se a dar-lhe o protagonismo merecido. há alturas em que chega a deixá-la ocupar todo o seu ser e a autonomia é tão grande que é a sombra que age, não ela, é a sombra que se movimenta, tomando-lhe conta dos gestos, dando rumo aos seus passos, vagueando em torno de um círculo que, a cada dia, fica mais estreito e mais apertado.
só mesmo uma sombra seria capaz de rodar em tão pouco espaço e é por isso
talvez
que se entrega, sem sequer resistir, à sua dança mortal. dentro do círculo, acabará por conter-se e, em vez de expandir-se, acabará
talvez?
por extinguir-se.
confirmou as suas suspeitas quando leu a mensagem sobre os últimos tempos que alguém lhe enviara: 'um manto negro abateu-se sobre tudo'. não era só ela, afinal, e em todos os círculos do mundo, as sombras tomavam conta da dança e assumiam-se as protagonistas da humanidade. mais uma vez, foi a sombra, e não ela, quem respondeu à mensagem: 'negro, negro, para mim também'. lá fora, a neve cobria toda a paisagem de branco, mas nem sequer isso chegou para afastar a premonição dos ciclos mortais a que todos estavam sujeitos, mais cedo ou mais tarde.
regressou extenuada. já era noite e reparou na sombra gelada, igual à superfície do lago, e não se extinguia, ao contrário do que no fundo de si desejava, mas expandia-lhe o frio e tremia, estendia-lhe os braços para que entrasse na dança e morresse com ela e foi então que recebeu a segunda mensagem: 'espiraliza-a. como quem não quer a coisa, vais desviando, abrindo, mílimetro a milímetro' e lá estava ela, a mandala feita no dia dos mortos, quando novembro tinha chovido também dos seus olhos e decidira sair desse círculo apertado onde só a sombra rodava, estreitando-lhe os gestos, resumindo-lhe os passos a circuitos fechados, intacta e espiralizada, a mandala, como se nenhum ciclo mortal pudesse, afinal, atingi-la.
a seguir, lembrou-se do verão e da casa da aldeia onde há muitos anos atrás o tinha levado, lembrou-se do quarto e da cama anos mais tarde, de estar nos seus braços e de o pedido lhe ter soado à promessa da felicidade que só a luz realiza e de nem sequer ter pensado que, já nessa altura, era apenas a sombra que, disfarçada de sonho, a conduzia para dentro de um círculo finito. lembrou-se da primavera no campo, do milagre da páscoa que ressuscitara a figueira no seu jardim caiado de verde, das metáforas todas a que recorre quando lhe faltam palavras para explicar o que sente, lembrou-se do fogo aceso nas lages e de como as chamas se extinguem quando deixa de haver quem alimente a fogueira, das brasas na madrugada da praia deserta e de os seus pés as pisarem, da queimadura que arde no peito da sombra, sempre que a deixa assumir o protagonismo e então pegou nela e pô-la a rodar na mandala.
quando a terceira mensagem chegou, não precisou sequer de a abrir para saber o que dizia: mentalizar os mecanismos de tudo o que lhe acontece na vida é algo de que, para já, não prescinde e hoje sente-se imune à possibilidade de nada fazer sentido nenhum.
-‘๑’-
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