quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

tenho andado a ler o que escreve

e talvez vá ter de interná-la. 
a sua voz era grave e não ria. vestia a bata branca dos médicos, que tinha uma nódoa  de sopa na gola, as lentes dos óculos pareciam mais grossas do que era costume, notou que há pelo menos três dias que não fazia a barba e desejou que houvesse um buraco no chão por onde pudesse escapar-lhe. mas não havia.
pensou no A. e no Júlio de Matos, para onde parece que foi transferido antes de ontem ou ontem, ninguém tem a certeza, sabe-se apenas que não recebe visitas.  depois pensou na dose de comprimidos que lhe dariam se por acaso cedesse ao que tem andado a pensar nos últimos tempos e que, felizmente, não escreve. 
não percebe, por isso, como foi que ele teve acesso às palavras e perguntou-lhe o que fora, ao certo, que lera.
a sua cabeça
respondeu ele, talvez ainda mais sério, a voz já não era só grave, mas dura, o tom arranhava-lhe a espinha, achou-o muito antipático. 
acho isso um abuso, quem foi que lhe deu licença?
através das lentes grossas dos óculos e fixando nela os seus olhos pretos, explicou-lhe que não precisava de licença nenhuma, que tinha acesso à sua cabeça sempre que queria e que quem abusava era ela, a meter coisas lá dentro que nem ao diabo lembravam e a atá-las umas às outras com tantos nós cegos que, mais cedo ou mais tarde, estaria presa numa teia complexa
e daí a possibilidade de vir a ter de interná-la. 
ignorou-o e voltou a pensar no buraco que se abriria no chão. bastava escrever 'abriu-se um buraco no chão', como fazia quando estava dentro das vozes na ilha, e desaparecer, mas ele tirou-lhe a caneta da mão
não escreva, não ia servir-lhe de nada. 
confirmou que tinha razão, já que há anos que não escrevia a caneta. ultimamente, gastava a polpa dos dedos nas teclas e disparava ao acaso frases sem nexo, esforçando-se para que tudo parecesse normal, e parecia, organizando as rotinas para que nada sobressaísse, vestindo as mesmas máscaras de sempre, quem a visse diria que não tinha nada fora do sítio, e provavelmente não tinha. 
a grande diferença
disse ele
é que antigamente, quando ainda escrevia a caneta, as coisas ficavam fechadas nos seus cadernos e ninguém as lia. mas agora deu-lhe para as pôr a boiar no néon e, eventualmente, isso pode causar-nos problemas.
pois não, não era de agora, isso também ela sabia. costumava chamar-lhe 'escrita desopilante' e era capaz de encher mais de cem folhas numa semana, com as mesmas teias e os mesmos nós cegos com que agora enchia o ecrã do computador. 
mas não creio que isso seja um motivo para me internar
justificou-se.
há anos que a minha cabeça é um labirinto complexo e não estou lá muito interessada em encontrar a saída.
pois já eu acredito que seja precisamente o contrário
disse ele, e a voz amolecera entretanto
e que não está lá muito interessada em encontrar a entrada, já que no dia em que encontrar a entrada o seu labirinto desfaz-se e deixa de haver um motivo para dar tantas voltas sobre si própria. 
mais uma vez, ela pensou no buraco. teria de ser muito grande para poder escapar-se por ele e não, não bastava escrevê-lo, mas escavá-lo até lhe doerem os ossos, até gastar não apenas a polpa dos dedos mas todos os músculos das mãos e teria de ser fundo a ponto de lhe rasgar as entranhas. 
mas a consulta estava a acabar e não teve tempo de lhe dizer o mais importante: que, a ser internada, gostaria que fosse num quarto com vista e que os comprimidos não fossem amargos, mas doces, e que ao engoli-los a sua voz não a arranhasse.
ao vê-la sair, provavelmente para ir buscar as crianças à escola na sua imaculada máscara de mãe, apontou na agenda a data da consulta seguinte e, com um suspiro, murmurou
há gente tarada de todo!

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