terça-feira, 5 de julho de 2011

Lucibel, vai tu!

talvez nenhuma sombra me tenha nunca verdadeiramente engolido graças à Lucibel. a Lucibel era a minha 'irmã má'. a que batia nos meus irmãos, a que deixava o quarto desarrumado, a que desafiava a minha mãe a dar-me palmadas, a que incomodava o meu pai com as suas má criações, a que fazia todo o tipo de asneiras quando havia visitas em casa, a que roubava anéis nas ourivesarias onde a minha avó me levava, a que fechava a minha prima na cave, no fundo, a que expurgava os meus pequeninos pecados. sempre que me sentia à beira de cometer uma maldade, ou que me apetecia fazer qualquer coisa que já sabia que não era bem feita, dizia-lhe
Lucibel, vai tu!
e ela ia.
e a seguir eu ralhava-lhe, atirava-lhe com as culpas para cima, encostava-a à parede e dizia-lhe
não tens mesmo vergonha nenhuma na cara!
a minha mãe ficava 'passada' de cada vez que, apontando o vazio, eu lhe jurava
foi a Lucibel, mãe, não fui eu.
o quarto todo ao contrário e eu jurava
foi ela, juro que foi ela.
os meus irmãos a chorar e eu garantindo
foi a Lucibel que lhes bateu, mãe, não fui eu.
a minha avó a morrer de vergonha quando me apanhava os anéis no bolso das calças e eu
foi de certeza a Lucibel que os escondeu aí dentro.
as visitas pasmadas e eu feita sonsa
não tens mesmo vergonha nenhuma na cara, pois não, Lucibel?
a certa altura, porém, a Lucibel desapareceu. a adolescência desassossegava-me, as hormonas aos saltos incomodavam-me, cresciam-me coisas para as quais não tinha lugar - no corpo e na alma - e comecei a querer ser eu a má. fugia de casa, mentia, roubava, falsificava assinaturas para poder sair do liceu, baldava-me às aulas, tirava negativas nos testes, sentia-me insuportável e dificilmente era capaz de expurgar aquele mal que sentia a comer-me por dentro.
muitos anos mais tarde, na ilha do Sal, em Cabo Verde, eis que abro um caderno e começo a escrever e a Lucibel reaparece! diáfana, leve, soprando-me coisas que decifrei como sendo na língua dos anjos, mostrando-me como a ilha do Sal era doce, mergulhando-me em sonhos de amor e de esperança e com um sentido de humor invejável. ao princípio, irritei-me com ela. insurgi-me
quem pensas que és para te pores a soprar dessa maneira aqui dentro?
mas não conseguia apanhá-la, muito menos calá-la, escrevia e a voz dela aparecia nas páginas. foi de tal forma intensa a sua presença que precisei de escrever um romance - o primeiro e único até agora. 'há vozes na ilha' é, visto à distância de mais de vinte anos, um diálogo interior a três vozes, já que à da Lucibel e à minha se veio juntar a da Adriana. 
esquizofrénica!
sim, é possível. é bem possível que sim, mas reparo como esta desconstrução de mim mesma foi crucial para que nunca me desmanchasse de facto. o que teria sido das vozes dentro da minha cabeça se, simplesmente, as tivesse mandado calar? como teria sido possível gerir a minha loucura se não tivesse ninguém com quem dividi-la?
tão grata lhes estou que, há pouco mais de três anos, peguei na Adriana e na Lucibel e transformei-as nas fadas do Pede um desejo. a esquizofrenia pode ser uma benção - e tão divertida! - quando surgem Lucibeis, Adrianas, Sophias e técnicos para me ajudarem a desmontá-la.

Sem comentários:

Enviar um comentário