foi no tal dia da conólostopia. estava de rastos e não era só do jejum, mas de outros vazios a roer-me as entranhas. estava em casa da minha mãe quando a minha irmã, cansada de tanto ranho e de tantas lágrimas, me deu um forte abanão e me chamou a atenção para a Maggie Doyne. 'olha mas é para isto', disse ela, abrindo-me a sua página do FB. 'uma miúda de 23 anos, americana, com uma obra espectacular no Nepal! é a minha heroína!'
confesso: no estado em que estava, eu quis lá saber quem era ou quem deixava de ser a boa da Maggie Doyne! por mais grandiosa que seja a obra dos outros, quando o vaziozinho nos rói as entranhas e nos enche daquela auto-comiseração indegesta, parece que somos como naquela frase do Herman Hess: 'em dias de nevoeiro, as árvores não se reconhecem'.
assim fiquei eu, irreconhecendo que só podia ser nevoeiro aquilo que inchava os meus olhos e me fazia sentir a mais infeliz das criaturas à face da Terra, indiferente aos meus semelhantes, achando talvez que pertenciam à espécie das 'aves raras'. pelo sim pelo não, carreguei no 'like' da página da Maggie Doyne, que assim entrou no meu universo do FB.
hoje voltei lá. à Maggie Doyne... e por lá fiquei durante toda esta tarde de sol. passei pelo seu blogue, li uma entrevista que deu, vi um filme em que se apresenta, a si e à sua obra. vale mesmo a pena seguirem os links. no entanto, e para os mais preguiçosos, aqui fica um pequeno resumo da história: depois de acabar o liceu, e antes de ingressar na faculdade, Maggie resolveu tirar um ano para viajar. partiu para o Nepal de mochila às costas e nunca mais voltou aos Estados Unidos. de lá, escreveu aos pais a pedir que lhe mandassem as suas poupanças e construíu a 'Kopila Valley Children's Home', onde hoje acolhe, alimenta, ama e educa trinta crianças órfãs.
em dias de sol, ao contrário do que acontece nos dias de nevoeiro, reconhecemos que todos fazemos parte da grande família humana. e comovemo-nos perante exemplos tão generosos da nossa raça, perante pessoas que nos garantem que, em termos de afectos, não estamos falidos e que a disponibilidade, a entrega e o amor fazem, de facto, milagres. por outro lado, corremos o risco de subestimarmos as nossas capacidades - e os nossos dons - e de nos amarfanharmos perante as Maggies Doyne do mundo - é o tal vaziozinho a roer as entranhas, a tal auto-comiseração, essa fatalidade do nosso egozinho carente, mas poderosíssimo, que, perante os apelos da nossa alma, se finge de surdo e se serve de toda e qualquer desculpa para não fazer sempre mais e melhor por si próprio, pelos seus semelhantes e pela grande família - humana e não só.
não, isto não significa que desatemos todos a pegar nas mochilas e a rumar ao Nepal para construir orfanatos! mas significa, como dizia Voltaire, que cada um tem de cultivar o seu jardim. ou, como diz um amigo meu, 'se cada um for responsável pelo seu quintal, já não é nada mau.'
o grande drama desta nossa família é o tal nevoeiro. o grande obstáculo é que muitos não querem tratar do quintal, mas deixar que o minem as ervas daninhas. o grande senão é quando se opta por cobiçar o quintal da vizinha, porque dá figos, nêsperas, ameixas, enquanto o nosso só dá laranjas. o grande equívoco é não percebermos que todos somos sementes de algum canteiro nesse mundo, de uma pequena erva que seja que, posta a crescer, pode um dia virar um quintal e na estação seguinte um jardim e por aí fora, até o mundo estar semeado de amor e todos gostando de partilhar as colheitas.
utopias? talvez. mas antes 'sofrer' de uma utopia do que de miopia. miopia é, precisamente, o tal nevoeiro que impede as árvores de se reconhecerem. é recusar o dom que todos temos - eu acredito que sim - e fingir que em nós não existe semente de nada. seja qual for o fruto que dá - orfanatos, laranjas, sorrisos, poemas, disponibilidade para os outros, alegria, coragem, famílias felizes, abrigos para os animais, escolhas saudáveis e sustentáveis, soluções criativas - há que plantá-la. e é urgente que todos o façam. cada um à sua maneira, cada um à sua medida, com os recursos que forem possíveis. chega de nevoeiro, de não nos reconhecermos como todos fazendo parte do mesmo e dessa conversa de que estamos 'falidos'!
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