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Sentindo que a hora estava a chegar, a mãe deitou-se no chão e esperou. A barriga, dura como uma pedra, apontava para o céu. À sua volta a noite caía e ninguém parecia dar importância ao milagre que estava prestes a acontecer. Ninguém, excepto o pai, que em vão procurava alguém que pudesse ajudar o seu filho a nascer. Tinham chegado há três dias ao campo de refugiados, um baldio onde tendas improvisadas oscilavam ao vento e sucumbiam ao pó do deserto, acolhendo quem não tinha mais sítio nenhum para onde ir. Uns fugindo da violência e da guerra, outros do desamor e do frio ou, simplesmente, da escuridão que se abatera sobre eles.
Foi então que o pai e a mãe viram aproximar-se um homem que se apresentou como médico e se ofereceu para fazer o parto. Qual não foi, porém, o seu espanto ao espreitar o corpo da mãe e ao ver que o bebé se apresentava de pés, e não de cabeça, como é costume. Temeu o pior, até porque os pés, apesar de perfeitos, cada um com os seus cinco dedos minúsculos, estavam azuis. Deitada no chão, a mãe transpirava, enquanto o pai, ao seu lado, lhe amparava a cabeça no colo. Por mais bem preparado que um médico esteja para os imprevistos da vida, as probabilidades de fazer com que um bebé que se apresenta de pés e azul sobreviva são muito pequenas.
- Tenho impressão de que já não respira... – lamentou, nessa altura. Mas a mãe garantiu que ouvia o coração do filho a pulsar junto ao seu e não desistiu e fez força. Os pés do bebé tactearam o ar, como se estivessem à procura de chão e o pai, muito contente, exclamou:
- Está vivo, doutor, não desista...
Mexia-se, sim, e isso era certo, caso contrário os seus pés estariam inertes, gelados, e não à procura de um lugar onde pudessem pousar e menos ainda de um trilho que ousassem traçar. A mãe fez mais força e, mesmo sendo já noite cerrada, o céu aclarou-se, os pés do bebé escorregaram mais uns centímetros e quase tocaram na terra.
- Puxe-o, doutor, puxe-o para fora... – pediu o pai, que continuava a amparar a cabeça da mãe no seu colo, ao mesmo tempo que lhe fazia festas na testa. E, no entanto, o médico não foi capaz de fazer nenhum movimento, provavelmente com medo de que aquele bebé trouxesse alguma doença esquisita e contagiasse os seus dedos.
A pouco e pouco, como se conhecesse de cor o caminho que liga o Céu e a Terra, o bebé pousou finalmente os dois pés na poeira do chão e, logo a seguir, fez deslizar o resto do corpo azul e minúsculo para fora do corpo da mãe. Em vez de chorar, sorriu para as estrelas que, lá de cima, assomavam à espreita. Boquiaberto, o médico ofereceu-se para cortar o cordão com o seu bisturi, mas foi o pai quem acabou por fazê-lo, com um canivete que tinha no bolso e sem temer que aquele bebé o contagiasse de amor.
Assim que a mãe teve o filho no colo, bem junto ao seu peito macio, toda a gente acorreu a espreitá-lo. Murmuravam-se coisas, em surdina todos davam palpites, faziam juízos, nunca ninguém tinha visto um bebé como aquele, azul dos pés à cabeça, mas vivo, os olhos translúcidos como se fossem feitos de mar, a pele de veludo brilhando no escuro, imune ao pó que o deserto trazia, no peito o coração a pulsar devagar e pausado, como na língua dos pássaros. Foi então que alguém perguntou:
- E que nome vão dar ao menino?
O pai e a mãe olharam um para o outro, nenhum tinha ainda pensado num nome, e o médico balbuciou que talvez nem valesse a pena chamar-lhe coisa nenhuma, já que previa que não tivesse assim tantas horas de vida. A avaliar pela cor, o bebé padecia seguramente de um mal incurável, mas a mãe afastou os rumores, deu-lhe o peito e ele mamou, como se fosse o bebé mais saudável do mundo.
No céu, um novo dia nascia e, aos poucos, a multidão dispersou-se, cansada de murmurar coisas e depois de ter esgotado os palpites sobre aquele bebé azulado sem nome, sem raça, país, estranho demais para poder ser humano, quanto mais um filho de Deus. Nesse momento, a luz infiltrou-se no vento e nas tendas e até o pó do deserto amainou.
- Vai chamar-se Índigo – resolveu a mãe nessa altura, e o pai concordou.
Hoje, tantos anos depois do seu nascimento, ainda há quem continue a estranhar o seu tom de pele de veludo e a julgá-lo por tudo aquilo em que é diferente dos outros. E, no entanto, há sempre uma luz que se infiltra no vento e que afasta a poeira e as dores de quem quer que se cruze com ele por esses caminhos de Céu e de Terra que, afinal, todos nós percorremos.
pois é querida ... ele havia de nascer um dia!
ResponderEliminarTinha todo o "Direito" a isso ... e já acontecia dentro de ti!
Beijo por entre os vários tipos de azuis que nos fazem vibrar e convidam ao amor ... porque para melhor está bem ... e o melhor continua a melhorar ...
...
é, é... porque assim e porque assado e porque isto e porque aquilo e... porque nada :))
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