domingo, 23 de outubro de 2011

fala-me da tua morte

e já tantos falaram. tenho as conversas gravadas, serão já nove ou dez, não me lembro, a ideia do livro entretanto mudou, o título por enquanto mantém-se.
fala-me da tua morte e houve alguém que me disse 'na pior da hipóteses é como dormir sem estar a sonhar' e observei-me a dormir, sem estar a sonhar, e não existe nem uma imagem que possa reter desse sono sem sonhos. e nem sequer faço ideia se é a pior das hipóteses, se haverá uma hipótese pior do que as outras, sei que a ideia da morte nos remete para a finitude dos corpos e que grande parte das nossas angústias vêm daí, de nos sabermos mortais, de nos sentirmos perenes, de estarmos sujeitos à impermanência das coisas, de acreditarmos que há qualquer coisa a separar-nos dos que estão mortos e de nos terem banido da eternidade quando, fisicamente, já não nos tocamos.
não sei. e é mesmo bom não saber. no livro, e aos testemunhos reais dos que ainda estão vivos, acrescentei a ficção dos que falam da morte do lado de lá, tão ou mais vivos do que os que ainda cá estão, afinal, e que encontraram, desse lado de lá, tudo o que imaginaram que encontrariam quando estavam ainda do lado de cá.
não sei. o lado de lá e o lado de cá foram, ao longo de anos e anos, dois lados que me esforcei por separar com muitas angústias e sempre cheia de dúvidas. a percepção, no entanto, é cada vez mais a de que não estão separados, não há um lado de lá, não há um lado de cá, há uma dança contínua de átomos, partículas e sei lá mais que poeiras que a olho nú são invisíveis que se juntam e se separam e de novo se juntam e se separam e que ora nos dão a ilusão da matéria, ora dissipam todas as formas e se consubstanciam na imensidão de um universo perfeito.
não sei. as próprias palavras - morte, morto, morrer - falam de crenças que ao longo dos séculos se entranharam em nós, sempre com muita dor à mistura, rituais mórbidos, pensamentos funestos, cemitérios onde enterramos as lágrimas, como se os corpos que aí deixámos contivessem ainda resquícios de afectos, de festas, de beijos.
e isto sei porque andei anos com o peso da morte a subir-me às entranhas. anos e anos a usá-lo como uma desculpa para me esvaziar de sentido, anos e anos até descobrir que, afinal, talvez fosse eu quem morria, ainda hoje me questiono se a morte não é, simplesmente, uma armadilha da língua, de cada vez que a usamos para significar o contrário da vida.
não sei. se me pedissem a mim
fala-me da tua morte
não faço ideia do que diria. mas sei, isso sei, que sempre que tomo a morte por ausência de vida me estou a enganar a mim própria. de cada vez que acredito que os que morreram se foram embora e me deixaram sozinha, estou a contar-me uma história da coitadinha. sei, isso sei, que a escuridão é onde me apago de cada vez que me afasto de mim, sei que a mente se pode treinar para ser cada vez mais capaz de não acreditar em mentiras, que o sofrimento em que tantas vezes mergulho é um gesto de auto-mutilação, tão humano, afinal, de cada vez que me esqueço que estou aqui, divinamente, a cumprir-me, ao serviço da vida e, tantas vezes, usando a morte como uma desculpa para me mortificar. se for mentira que são coisas opostas, a vida e a morte dançam em mim todos os dias e tudo o que há para fazer é seguir-lhes os passos.
mas nem isso sei. não sei nada, que bom! apenas a história que neste momento escolho contar-me e que, neste momento, seja de vida ou de morte, é de paz. luminosa e azul como esta imagem? sei lá!





2 comentários:

  1. por acaso encontrei seu blog e gostei muitissimo.
    colocarei um link no meu.
    Abraços e parabéns pelos belos escritos.

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  2. Se sair o livro, avise por favor, para que chegue a notícia para esta pessoa do Brasil. Gosto muito do jeito como escreves.

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