que se apagou como, um dia, eu gostaria de apagar-me, aos noventa e quase sete anos de vida, durante a sesta a meio do Verão, protegido pelo crepúsculo das cortinas, na sua casa de Pedrouços, era Balança como eu e um homem muito bom e muito sério. lembrei-me hoje dele nem sei porquê, ou talvez saiba e seja por várias razões: porque era bom, porque era sério, porque chamava Luisinha à minha avó, porque deu um contributo inestimável à nação ao presidir à Assembleia Constituinte, em 1976, porque entalava o guardanapo no colarinho da camisa, à moda antiga, porque era anti-fascista, porque me punha na ordem sem me levantar a voz, porque era justo e generoso e corajoso e porque se apagou assim, sem alarido ou espalhafato e como um dia também eu gostaria de apagar-me, durante a sesta a meio do Verão, protegida pelo crepúsculo das cortinas, na minha infância de Pedrouços.
não fui ao funeral, mas despedi-me dele a rir, imaginando a surpresa que não foi quando viu a Luisinha, minha avó, à sua espera e descobriu que afinal havia céu, ou outra coisa que lhe chamem, e que a vida era infinita. para o meu avô Henrique, a vida era pragmática e acabava-se no dia em que o coração paráva e foi por isso que me ri, porque ouvi, nitidamente, o seu coração aos pulos quando viu a Luisinha, minha avó, a abrir-lhe os braços e a chamá-lo, também ela, pelo seu diminutivo e a dizer-lhe
ó Henriquinho, ainda bem que já cá está
e a irem de mãos dadas pelo céu fora, ou outra coisa que lhe chamem, descobrindo as maravilhas que a eternidade nos reserva.
muito antes disso, no entanto, o meu avô percorreu muita terra e muito campo, ou não tivesse ele sido Engenheiro Agrónomo, professor de Economia Rural no Instituto Superior de Agronomia e autor de inúmeros estudos sobre Economia Agrária. é verdade que eram coisas que, na altura, sendo eu uma miúda, me diziam quase nada. para mim, o seu profundo amor à terra manifestava-se na forma como podava os xuxus, empoleirado num escadote, como colhia as tangerinas, as ameixas, as pêras ou os limões do jardim lá de Pedrouços e a ele devo as incursões pelas matas do Buçaco, onde sabia e me ensinava o nome de cada árvore, assim como o 'meu' quinhão de campo e a casa de Fiais.
também a sua faceta de político, naquela altura, me escapava. quando Abril saiu à rua de cravos enfiados nas espingardas, eu estava em casa dele, mas não soube alcançar aquele brilho de alegria nos seus olhos e só muito mais tarde comprovei que era o brilho do sabor da liberdade. assim como só muito mais tarde dei valor ao seu papel de Presidente da Assembleia Constituinte, embora tenha estado presente no dia em que tomou posse e me lembre de ver as minhas tias muito aflitas porque alguém me tinha dado uns rebuçados que eu engolia de enfiada e que - achavam elas - me iam fazer mal à barriga.
hoje, perante a corja que tomou conta da política, dou ainda mais valor à sua enorme integridade e à vida simples que levava, mesmo enquanto foi ministro. as mordomias desse tempo resumiam-se a ter um polícia à porta - a quem as minhas tias levavam pratinhos de sopa e de arroz doce - e um camarote no S. Carlos - onde eu e a minha prima E., cansadas dos gritos estrídulos das óperas a que nos levavam, dormíamos no chão, enroladas nos visons da tia Maria Antónia.
também me lembro de ter ido com ele e com a Luisinha, minha avó, votar nas primeiras eleições e de o Henriquinho, meu avô diminutivo sempre que o seu nome saía amorosamente da boca da minha avó, ficar muito aflito porque eu e a minha prima E. tínhamos levado umas bandeirinhas com as siglas I.E.V., que abanávamos furiosamente mesmo à boca das urnas. I.E.V queria dizer 'Inteiro Esculeguinhas Valentinhas'. 'Inteiro' porque ambas tínhamos jurado não pertencer nunca a um partido, 'Esculeguinhas' porque é assim que nos tratamos, desde que somos pequenas, e 'Valentinhas' porque sim. mas o meu avô Henrique, mesmo sendo o I.E.V brincadeira de crianças, estava aflito com a ideia de eu e a minha prima E. estarmos a fazer propaganda ilegalmente... e confiscou as bandeirinhas e pediu à Luisinha, nossa avó, que nos levasse dali.
pois foi, lembrei-me deste avô que acompanhei até ser muito velhinho e que hoje me apeteceu trazer aqui para dentro... por nada de especial ou, simplesmente, por tudo isto que escrevi acerca dele e que afinal foi tão pouco para tudo aquilo que foi e fez, mas sobretudo pela surpresa, quando morreu sem espalhafato ou alarido, protegido pela sesta e pelo crepúsculo das cortinas e vislumbrou a Luisinha, minha avó, à sua espera e a dizer-lhe
ó Henriquinho, ainda bem que já cá está
e acho então que foi por isso e porque era, realmente, um homem bom.
:) Bonito texto :)
ResponderEliminarhehe gostava de ter visto a cara dele qd viu a tua avó!
(Tb sou balança) :P
Pois é Inês. Um Avô assim é um Avô para sempre, mesmo que não esteja perto de nós fisicamente, mas apenas perto de nós em espírito que sentimos, de vez em quando, passar por nós, conversar conosco. Sinto muitas vezes...bonito este texto. Bonito o nosso sentimento pelos Avós.
ResponderEliminarbeijo
Amei ;)
ResponderEliminarUma verdadeira homenagem e demostração de que apesar de ele já não estar presente fisicamente eles moram sempre dentro de nós.
O seu avô deve ter sido sem dúvida um homem que além de fazer parte da nossa história, um homem interressante, culto e sem dúvida riquissimo de espirito e muitos desses valores os passou para si.
O meu vive dentro de mim, sou como sou graças, foi ele que me educou e vez eu ser como sou. Muitos são os dias e situações que gostaria que ele estive-se presente ali mesmo ao meu lado, no entanto sei que ele esteja onde estiver estará a olhar por mim, a sorrir nas minhas alegrias e a enviar energia positiva quando as coisas correm menos bem.
Mais uma vez obrigado pela partilha
Beijo
Linda esta homenagem, e que bons tempos e boas lembranças dos Fiais. Beijinho e obrigada pela partilha.
ResponderEliminarQue lindo! Que excelente património!
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