a lua veio com a serpente e em troca ela ofereceu-lhe um mapa. que sim, que estava gasto e a ceder ao desalento, o chão de tábuas que o bolor tinha rompido. abria frinchas e exalava a liquidez das fundações, construída sobre o luto e sobre as lágrimas de quem nunca o pisara ou conhecera, ainda que o tivesse adivinhado muito antes da partida. e que não, que os mortos não podiam instalar-se e habitar a sala grande, habituar-se à penumbra circular e ao vidro fosco das auréolas, às poeiras do desgosto, que era urgente que as flores ressuscitassem noutros vasos, que se exorcizasse o pranto das crianças que assombravam os pinhais da sua infância e que retinham a alegria em copas bravas. sim, arredondá-las, torná-las mansas como é, afinal, suposto serem, copas de ventre onde acolheu os outros quatro habitantes dessa casa, onde também moram fantasmas, moram anjos que de noite pousam na orla das portas e não há mal nenhum nisso, pelo contrário, há que dar graças quando os anjos habitam a nossa carne.
que sim, que numa casa onde as escadas nos dividem entre os planos do que em baixo e do que em cima nos parece separado, seria sempre complicado o amor vingar, porque não vinga. não é um verbo que combine com aquilo que traz no peito, não é vingando-se de nada que algum dia terá paz, mas muito mais cruzando os planos, subindo e descendo as escadas, já que aquilo que está em baixo é aquilo que está em cima e aquilo que está em cima é aquilo que está em baixo.
que seria tão mais quente e tão mais acolhedor haver mais fogo e menos água, conter as infiltrações para que parassem de trazer-lhe as memórias do passado e de lhe encharcar o corpo, atacar a humidade com a chama viva das paixões que não nos deixam desistir de encontrar ouro no interior das nossas sombras. que a salamandra e a lareira e as histórias e as pessoas se alimentam disso mesmo, da chama viva das paixões, das doces brasas de um abraço, e que das cinzas se renasce a cada dia que passa, haja lenha para queimar quando o Inverno, devagar, chega e vem bater à porta.
que sim também, que a cama poderia e deveria ser maior, com cabeceira para que os sonhos não trepassem às paredes e se esvaíssem com a noite, que a manhã, clara e nova, entrasse num quarto sem história e sem gemidos de ninguém. que no fundo lhe parecia nunca ter acreditado que merecia tantas bençãos, tantos dons, o que era estranho, tendo em conta as árvores todas que cresciam no jardim e davam frutos, adivinhava-se na relva o nascimento de um caminho, as bunganvílias prometiam muito mais do que dar flor, como é que não via ainda a liberdade semeada nas roseiras sempre que choviam pétalas? que não deixasse, por favor, de acreditar na poesia, nem desistisse de rimar consigo própria, que deixasse a sala aberta para o jardim e uma passagem para onde quer que quisesse ir, que se cumprisse sem esperar mais por mais nada ou mais ninguém, porque podia de repente ficar tarde e o chão ruir, desta vez sem mais conserto.
e, no entanto, foi preciso arquitectarem-se os afectos para a mudança ser real. esvaziarem-se as casinhas que se enchiam de lembranças e de tralhas e de bichos, arrastar as velhas coisas lá para fora e deitar fora as que nunca mais serviram - há sempre tantas coisas que não servem e que, mesmo assim, guardamos! pôr ao sol o que era sol e à sombra o que era sombra e suspirar, ainda na velha cama, já sem esforço e só suando do prazer que lhes trazia estarem juntos a cumprir mais uma etapa do caminho ou apenas experimentando partilhar uma aventura.
foi preciso a visão dele, e o acordo dela, para mudarem de lugar este sofá, aquela cómoda, duas mesas lá de fora cá para dentro, um tapete para a cozinha, pega ali, arrasta aqui, a ideia era pintar tudo de branco, já que no branco pode sempre começar tudo de novo. foi preciso desenhar numa folha aos quadradinhos as medidas onde iria construir-se de raíz uma outra coisa e que sim, que ia ficar mesmo bonita, arejada e limpa, de branco como o resto das paredes, de branco como o resto do seu corpo, de branco como tudo aquilo que é novo, não fossem haver ainda tantas mágoas que os manchavam, tanta tinta a escorrer no meio dos dois, tanto caos, tanta desordem, tanto amor para pôr ao sol e os dois ainda a resgatar a sombra.
que sim, que numa casa onde as escadas nos dividem entre os planos do que em baixo e do que em cima nos parece separado, seria sempre complicado o amor vingar, porque não vinga. não é um verbo que combine com aquilo que traz no peito, não é vingando-se de nada que algum dia terá paz, mas muito mais cruzando os planos, subindo e descendo as escadas, já que aquilo que está em baixo é aquilo que está em cima e aquilo que está em cima é aquilo que está em baixo.
que seria tão mais quente e tão mais acolhedor haver mais fogo e menos água, conter as infiltrações para que parassem de trazer-lhe as memórias do passado e de lhe encharcar o corpo, atacar a humidade com a chama viva das paixões que não nos deixam desistir de encontrar ouro no interior das nossas sombras. que a salamandra e a lareira e as histórias e as pessoas se alimentam disso mesmo, da chama viva das paixões, das doces brasas de um abraço, e que das cinzas se renasce a cada dia que passa, haja lenha para queimar quando o Inverno, devagar, chega e vem bater à porta.
que sim também, que a cama poderia e deveria ser maior, com cabeceira para que os sonhos não trepassem às paredes e se esvaíssem com a noite, que a manhã, clara e nova, entrasse num quarto sem história e sem gemidos de ninguém. que no fundo lhe parecia nunca ter acreditado que merecia tantas bençãos, tantos dons, o que era estranho, tendo em conta as árvores todas que cresciam no jardim e davam frutos, adivinhava-se na relva o nascimento de um caminho, as bunganvílias prometiam muito mais do que dar flor, como é que não via ainda a liberdade semeada nas roseiras sempre que choviam pétalas? que não deixasse, por favor, de acreditar na poesia, nem desistisse de rimar consigo própria, que deixasse a sala aberta para o jardim e uma passagem para onde quer que quisesse ir, que se cumprisse sem esperar mais por mais nada ou mais ninguém, porque podia de repente ficar tarde e o chão ruir, desta vez sem mais conserto.
e, no entanto, foi preciso arquitectarem-se os afectos para a mudança ser real. esvaziarem-se as casinhas que se enchiam de lembranças e de tralhas e de bichos, arrastar as velhas coisas lá para fora e deitar fora as que nunca mais serviram - há sempre tantas coisas que não servem e que, mesmo assim, guardamos! pôr ao sol o que era sol e à sombra o que era sombra e suspirar, ainda na velha cama, já sem esforço e só suando do prazer que lhes trazia estarem juntos a cumprir mais uma etapa do caminho ou apenas experimentando partilhar uma aventura.
foi preciso a visão dele, e o acordo dela, para mudarem de lugar este sofá, aquela cómoda, duas mesas lá de fora cá para dentro, um tapete para a cozinha, pega ali, arrasta aqui, a ideia era pintar tudo de branco, já que no branco pode sempre começar tudo de novo. foi preciso desenhar numa folha aos quadradinhos as medidas onde iria construir-se de raíz uma outra coisa e que sim, que ia ficar mesmo bonita, arejada e limpa, de branco como o resto das paredes, de branco como o resto do seu corpo, de branco como tudo aquilo que é novo, não fossem haver ainda tantas mágoas que os manchavam, tanta tinta a escorrer no meio dos dois, tanto caos, tanta desordem, tanto amor para pôr ao sol e os dois ainda a resgatar a sombra.
que sim, que ficou presente em tudo, mesmo depois de se ir embora - é sempre a ele que se abandona. ficou presente na casinha das magias onde um anjo inspira as cores dos corações quando abre as asas, na transparência do cristal com que lhe resgatou a alma, algures no hemisfério sul da sua, na disposição das mesas para que possam estar mais perto e até tocar-se, mesmo estando um deles ausente, na visão de que o espaço se alargou de forma a dar-lhes muito mais do que os contornos da matéria e que é por isso que a presença se mantém tal qual a mesma. na disposição da relva, que acolhe a lua a cada noite que passa - mesmo que faça frio ou chova -, nas flores que lhe dão as boas vindas à entrada, de cada vez que chega a casa, na clarabóia onde vê nascer as estrelas e que a madrugada rompe, depois de sonhar com ele, na certeza de que as manchas de humidade e de mágoa e de bolor se dissipam à passagem do píncel. e que sim, que merecem, tantas bençãos, tantos dons e tanto amor. o fogo aceso, quando o Inverno lhes vier bater à porta, nem que para isso precisem de renascer das velhas cinzas de tudo aquilo que arde na dor.
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