quinta-feira, 3 de maio de 2012

t e r r a *.


hoje voltei a lembrar-me. já noutro dia me tinha lembrado, quando cheguei ao ar livre e me cheirou a terra molhada. e precisei de tocá-la, porque só o cheiro não chegava, tinha de tê-lo colado aos meus dedos, apeteceu-me esfregar a cara, o corpo, a pele toda, queria que tudo tivesse a textura da terra, como daquela vez na cabana, em que suei e gemi de encontro ao seu ventre.
ando a revolver as águas maternas, talvez seja por isso que choro
ultimamente tenho chorado
tem chovido e o cheiro da terra devolve-me ao útero, reconduz-me às entranhas, aos lagos fecundos e femininos do corpo, às dores ancestrais das mulheres, à gestação dos afectos, à humidade do mundo. 
mães. é disso que tenho andado a tratar e, neste momento, tenho uma a queixar-se, uma mãe de papel que se queixa da ausência do pai, da ausência dos pais, como se assim só fosse metade.
metade de mãe.
levará o seu tempo até que descubra onde é que se parte, pode até ser que nunca descubra, ainda não sei.
chove e a terra traz-me a promessa: não há nada que me separe. e volto ao colo que me dá, de cada vez que me rendo. volto a lembrar-me de tudo, até sem saber o que é tudo. das viagens que faço de olhos fechados, do embalo das marés, da vulnerabilidade das aves, da orfandade dos anjos, coisas que invento, talvez seja disso que constantemente me lembro.
voltei a lembrar-me de mim, de me terem rasgado as entranhas, dos hinos de espanto e louvor que vieram dar ao meu colo, de as cicatrizes, umas por cima das outras, serem a prova inquívoca de que as dores saram.
voltei a lembrar-me de todas as mães que já tive. das mães todas que tenho.
heranças, memórias, paisagens, pinhais e tenho uma mãe que plantou um no campo, manso como convém a quem procura um abrigo debaixo da copa das árvores, mais uma mãe de papel expiando o contágio da carne, nunca sei se é na ficção que imito a realidade ou se é com a vida que atiro para cima das minhas mães de papel, para que me aliviem da carga.
não sei, mas voltei a lembrar-me.
naquele dia, voltei a lembrar-me e hoje, mais uma vez, a chuva promete voltar e molhar tudo em volta: a relva, as memórias, as pálpebras. há uma série de coisas que me atravessam a alma quando verto palavras, quando quero converter o que sinto na escrita, há sempre uma parte que falta, um lugar indizível ao qual as palavras não têm acesso, um intervalo entre a voz e o peito. averiguar a verdade é inútil, portanto. é inútil esquecer-me de tudo e foi disso mesmo que hoje voltei a lembrar-me.

2 comentários:

  1. adorei, Inês.
    Não tem mal chorares...lavas a tua alma e limpas o teu ser. Depois sentes-te melhor. Como que alguém te ajudou a levar o teu turbilhão interior.. chorando contigo, noutro plano. São os teus anjos, porque tu tens mais do que um.
    bjos

    ResponderEliminar
  2. Olá Inês,
    gostei muito desta imagem, foi você quem tirou a foto?
    estou fazendo um site para uma amiga de uma clínica de terapias holísticas e queria usar esta imagem como plano de fundo, você tem como me mandá-la em uma resolução mais alta?
    muito obrigado

    ResponderEliminar