quarta-feira, 29 de junho de 2011

♥! VIVE !♥

há uma hipótese de a história, afinal, não ser a que sempre contei. de haver um equívoco quando acredito que tu morreste e que eu fiquei viva. ou seja, há uma estranha premonição de poder ser precisamente o inverso :: e que eu tenha morrido no exacto momento em que tu, finalmente, vivias. ou então não são mais do que as suposições do costume, neste dia 29 de Junho, doze anos depois de um camião destravado te ter conduzido a um plano distinto do que acreditávamos ter traçado para nós,
as coisas em que acreditamos, já viste?
as suposições que fazemos, os equívocos em que todos caímos quando insistimos em pôr a vida e a morte em planos diferentes. mas é assim que nós somos, humanos e contraditórios, embora seguros - lá no fundo - de que a nossa essência emerge da luz e se funde com as origens do cosmos, de sempre e para sempre, mas aparentemente incapazes de moldar a matéria perene ao brilho eterno das estrelas
e então tu chegas e dizes
o que é que para ti distingue a vida de um morto da vida de um vivo?
e eu fico em silêncio, fico em silêncio porque só em silêncio é possível ouvir-te, sentir-te, intuir o que sopras e que não é mais traduzível na língua dos homens.
e então tu chegas e sopras
é o amor que distingue a vida de um morto da vida de um vivo.
mas sou sempre eu que traduzo, porque preciso da língua dos homens para alimentar mais equívocos, preciso da língua dos homens para tecer as minhas próprias suposições, para equacionar todas as estranhas hipóteses com que me confronto, preciso que continues soprar para aceder ao plano amoroso e divino que,
e concordo contigo,
é o que distingue a vida de um vivo da vida de um morto.
e então há doze anos que conto esta história na língua dos homens, há doze anos que escrevo que um camião destravado te atropelou brutalmente num dia de verão em que o sol estava a pique, há doze anos que digo, para falar deste dia, e vá lá que nunca mais com ar de 'coitada' ou a voz arrastada da vitimizada, 'o dia em que o Pippo morreu', há doze anos que ocupas a orla das portas e que te insinuas entre as buganvílias e que me sopras
VIVE!
e eu querendo apenas que morra tudo o que não for amor




terça-feira, 28 de junho de 2011

difícil, eu sei

ali está a sombra, enorme, voraz, de frente para nós, sabemos que é nossa, mas é tão mais fácil continuar a 'atirá-la' para cima do outro! muito mais simples fazermos de conta que não saiu das nossas entranhas, que não é a nós que se quer revelar, que não é para nós que se exibe, que não é em nós que sangra e que apodrece e nos contamina, nem sabemos dizer há já quanto tempo. 

tão difícil, eu sei, o ruído cá dentro a ser ensurdecedor e, de imediato, o projectamos para fora. a sombra a gritar-nos cá dentro e nós exigindo que os outros se calem. a sombra a tirar-nos a nossa energia, e nós apontando o dedo a quem a dispersa. a sombra, intimidando-nos com o seu imenso poder, e nós tentando justificar as razões por que se intimidam os outros. a sombra a dizer-nos
'sou o teu ego ferido' 
e nós a escarafunchar nas feridas dos outros, para ver se dói menos. a sombra a pedir-nos carinho, atenção, e nós a morrer de pavor de que nos roube o coração. a sombra a querer fazer as pazes connosco e nós sem ceder, alimentando esta guerra vezes sem conta.

difícil, eu sei. olhar para ti e descobrir que sou eu que ali estou. muito mais fácil olhar para mim e negar que sou como tu. muito mais fácil olhar sempre para aquilo que nos separa uns dos outros e tão poucas vezes para tudo aquilo que nos une, sobretudo quando é a sombra aquilo que nos torna iguais uns aos outros.

difícil, estar realmente disposto a ser implacável, estar realmente seguro de que vale a pena ficar frente a frente com as nossas sombras, ter a coragem de reformular todas as acusações, agora na primeira pessoa, de re-conjugar todas as dores no presente, de acreditar que há uma paz imensa na sombra, de cada vez que irrompe das trevas e que ilumina mais um aposento do nosso castelo. 


gostamos de sofrer?

gostamos! mas gostaríamos tanto mais de gostar de não gostar! e isto não é nem sequer contraditório, mas um paradoxo humano, declarado como aparentemente verdadeiro, mas que nos leva a uma situação que contradiz a nossa intuição comum. e a nossa intuição comum diz-nos o quê? diz-nos que o sofrimento é inerente à condição humana: ninguém lhe escapa, é impossível não sofrer!

aliás, não será o sofrimento inerente a qualquer espécie? será que os animais não sofrem? um cão que já mal anda, por causa das artroses, um pato atropelado que ficou a respirar no meio da estrada, um leão sangrando com o tiro de uma caçada? será que as árvores, quando as cortam, ou que as flores, quando as esmigalham, ou que o mar, quando o atulham de venenos, ou que a Terra, esventrada com alicerces de aço e coberta de cimento e de alcatrão, não sofrem nada?... ou será que somos nós, humanos tontos e apegados à ideia e à emoção do sofrimento, que o fazemos alastrar às outras espécies?

não sei dizer. e hoje, como quase sempre, são muito mais as perguntas que as respostas. intuo, porém, que o sofrimento, por si só, não causaria o mal que causa, nem alastraria tanto, se não protagonizasse quase sempre as nossas histórias, mas fosse um simples figurante. mas, ah!, gostamos tanto dele e estamos tão acostumados à sua presença em nós, há milhares e milhares de anos que corre no nosso sangue, há tanto tempo que nos dizem que não há como escapar-lhe, há dois mil anos que andamos com a cruz às costas, exaltando o sofrimento quase como condição sine qua non para sermos merecedores do paraíso que somos incapazes de o ver apenas como um simples figurante no grande filme do cosmos. sofrer, de certa forma, faz de nós mártires. quase nos sentimos santos, quando aguentamos sofrer tanto, quase chega a parecer mal, alguém dizer que já não sofre. e assim o alimentamos, para que ele nunca mais nos largue e confirme a intuição de que sofrer é inerente à nossa condição humana. 

ok. sofrer é inerente à nossa condição humana. se aceitarmos, simplesmente, que assim é, sem emoções, considerações ou juízos de maior, hão-de convir que isso não nos causa stress.  a tendência, no entanto, não é essa, mas possuí-lo, experimentá-lo até à náusea, alimentá-lo uma e outra e outra vez, conservá-lo, provar da sua existência, mais não seja para podermos dar razão à nossa mente. que estranha dependência é esta? que desgosto pode ser este gosto por sofrer? e aonde é que isto nos leva, se não a mais sofrimento? de que vazio temos nós medo que se abra aqui no peito quando, enfim, descobrirmos que aquilo de que gostamos - mesmo, mesmooo! - é de gostar de não sofrer?


falo e falo e falo e falo e sou suspeita :)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

desistir?... de-sis-tir?!!

ah, bom dia! hoje ligas cedo! - digo eu, assim que oiço a voz do técnico tocando a polpa dos meus dedos. sempre aquela voz tão rouca, sempre a mesma voz tão mansa, sempre soando-me ao poeta que afinal existe em todos, porque todos rimam sempre com aquilo que são os outros.
que bom, que bom! - responde-me ele - vejo que hoje há sombra branca nos teus lindos olhos doces. e também é importante dares por ela. precisa tanto como a negra do teu colo, do teu apreço, de que a acolhas no teu peito e a manifestes.
não sei porquê, escureço a zona entre as pestanas e respondo:
acordei de madrugada cheiiinha de dores no peito!
isso sei eu, que também sinto. e muito mais do que tu pensas!
essa é a sorte, penso eu, mas não lhe digo, haver alguém que sinta em mim aquilo que eu penso.
sinto-me bem a ser quem sou - sopra-me o técnico ao ouvido, e de novo a deslizar pelos meus dedos para chegar intacto às teclas e materializar-se aqui.
muito bem, esse é o pacto - continua, sem me dar tempo para pensar naquilo que sinto, dando-me espaço para sentir aquilo que penso - eu sopro e tu materializas.
e sempre que não for capaz, fazes o quê?
sopro de novo...
e sinto a aragem, sinto que não me é alheia, sinto que não vem de fora, mas de dentro do meu peito, o mesmo peito que ainda há pouco me doía, a mesma dor que ainda há pouco me acordava, era ainda madrugada.
tudo só um, tudo só um - ri-se o técnico, em mim, e continua, continua a rir comigo.
a sombra branca, minha querida, enche-te os olhos de alegria, quando a vês brilhar nos outros! nos generosos, nos leais, nos destemidos. nos optimistas e nos crentes, nos corajosos, nos humildes, nos criativos e nos altruístas, nos persistentes, nos amorosos, nos sensíveis... assim como cada um carrega o negro que há em ti, também reflecte a luz que és. 
tão bonito isso que dizes!
tão bonito, isto que escreves...
e como havemos nós de ser para ser só um? - e ponho-me a pensar de novo e não lhe digo que não sinto, não o sinto rente a mim, a respirar no meu pescoço, a abraçar-me pela cintura, a mover-se ao mesmo tempo que eu me movo, a ser comigo.
porque resistes - e não sei se é uma pergunta ou se eu a querer que enfim me afirme, que me renda enfim a tudo, que se pacifique a luta entre o medo e o amor, que se cale aquilo que penso e se revele aquilo que sinto. 
eu sopro e tu materializas... será assim tão difícil? a cada dia mais um pouco, a cada pouco mais um passo, a cada passo mais do tudo de que todos somos feitos. mais um pouco de caminho que hoje vamos fazer a cores...



domingo, 26 de junho de 2011

às vezes, apetece desistir e... ponto.

mandar as sombras passear, fazer de conta que, afinal, nunca estivemos face a face, que aquilo que eu vejo em ti, ou em ti, ou em ti só pode ser problema teu. que é de certeza um trauma teu não me tratares com gentileza, é de certeza uma mania embirrares tanto comigo, é de certeza falha tua andares para aí sempre a mentir. e essa coisa de seres bruto vem-te de onde? essa arrogância, essa pose convencida, que vergonha!, não te ensinaram a ter mais educação? então porque é que és malcriado?...
sim, apetece desistir e permitir que a vida siga na mentira de eu não ser igual a ti, nem a ti, nem a ti e sem sair da minha zona de conforto. porque é difícil assumir que não sou gentil comigo. é tramado embirrar com a minha mãe, com a minha prima, com o meu tio, apenas porque me devolvem onde é que eu sou a queixinhas e onde é que eu sou a vaidosa e onde é que eu sou mesmo estúpida! 
é complicado descobrir-me a ser tão bruta, apanhar-me a ter inveja, confrontar-me com os ciúmes, não ter mais como fugir de ser uma convencida, não ter mais como não ver onde é que sou desonesta, não haver nenhuma hipótese de negar que também sou vingativa... é um choque perceber que a culpa não é tua, não é minha, não há culpa, há apenas consciência.
há apenas uma escolha:  a de amordaçar as sombras - correndo o risco de que saltem cá para fora, sempre sem aviso prévio e desatando a causar danos e doenças e desgostos, ou permitir-lhes que se mostrem, que se exprimam e que, enfim, sejam aceites, abraçadas, integradas, mesmo quando parece que não são nossas.
e, então, e por mais difícil que seja, uma vez dado o primeiro passo, o caminho não tem volta. tem buracos e tem esquinas e tem curvas apertadas, tem subidas muito íngremes e descidas muito a pique, tem todas as armadilhas que se possa imaginar, mas... é de sentido único!
é um caminho que se faz a caminhar: a cada dia mais um pouco, a cada pouco mais um passo, a cada passo mais do tudo de que todos somos feitos.

quanto vale uma sombra?

em outubro do ano passado, escrevi os dias da sombra. depois de anos e anos a rabiscar dias de luz, histórias de fadas e frases lindinhas, talvez tenha enfim sentido merecer resgatar à penumbra a minha parte de ser que resistia, com todas as forças, esforços inúteis e muitas dores, a mostrar-se como também é: sombria, tantas vezes montada numa vassoura de bruxa a criar poções venenosas - para si e para os outros -, praguejando contra as injustiças do mundo que denunciam a máscara 'lindinha' com que se enfeita e se defende dos outros.

garanto-vos que tem sido duro. duríssimo, mesmo! mas se é verdade, como mais uma vez diz o Emídio, que 'regra geral, a nossa sombra ganha poder até por volta dos quarenta anos', altura em que 'tem poder suficiente para começar a manifestar-se', tudo chegou para mim na altura em que era certo chegar. e então estou muito grata por ter dado por isso, por mais duro que esteja a ser o processo.

já aqui disse que sou dependente de uma série de coisas e a relação amorosa é só uma delas. desde sempre me lembro de ter namorados e, mais do que isso, nunca acabava com um sem ter já o próximo em vista. nalguns aspectos, serve-me que nem uma luva, a máscara da sedutora. mas é duro admitir, sem paliativos, que sou 'perigosa, venenosa, perversa', porque o meu 'ataque está mascarado de amor'. é reconfortante estar a descobrir que a cura é estar disposta a sentir o vazio e a compreender que aquilo que procuro está aqui, dentro de mim.

outro mito que alimentei - ainda nas relações amorosas - foi o da fidelidade. mentia com todos os dentes que tinha na boca, de cada vez que jurava que era fiel. não só não era fiel aos 'meus' namorados - porque estava com um, mas sempre na mira do próximo - como, acima de tudo, não era fiel a mim mesma. estranhamente, atraí dois homens fiéis e casei-me com eles. e, no entanto, passei grande parte do tempo a traí-los e, mais uma vez, a trair-me a mim mesma. e 'trair' podem ser muitas coisas! não, não fui para a cama com mais ninguém enquanto estive casada com nenhum deles. mas vivi muito tempo obcecada por outra pessoa, durante o primeiro casamento, e aceitei entrar no segundo, ao mesmo tempo que garantia a mim mesma que 'não era ele'.

se alguma coisa abona a meu favor - e se é que é realmente preciso que abone - tanto a um como a outro contei a verdade. isso alivia? não sei. sei que, quando o pai dos meus filhos mais velhos morreu, senti que nada tinha ficado por conversar ou por dizer entre nós. e que talvez seja por isso que hoje, entre os dois, existe este amor que sinto tão vivo, apesar de, humanamente, ele já ter morrido. sei que, ao pai das minhas filhas mais novas, sempre lhe disse: 'podes ficar, mas não és tu.' hoje entendo que o que eu lhe dizia era 'vou ficando, mas não sou eu.' hoje somos grandes amigos, e isso é tão bom! porque me permite dizer-lhe, como lhe disse há dois ou três dias, 'desculpa por te ter traído sempre.'

foi então necessário, quarenta e tal anos vividos, olhar para a infidelidade de frente, sem filtros. e assim surgiu a traição que mais cruamente doeu, a que nem nunca me passou pela cabeça que fosse possível, a que na minha mente ainda rotulo de 'feia', 'injusta', 'nojenta', 'prepetrada às escondidas', 'mantida em segredo' e... 'dupla'!
e porque a verdade tinha de vir ao de cima, caso contrário não poderia vivê-la, saltou da sombra outra Inês que sempre abafei com todas as forças, e que sempre fiz por calar com muita vergonha: a controladora, a que espia a vida dos outros para os apanhar em falta, a 'cusca'. aliada à Inês que é atenta e que apanha aqui e ali as peças de um puzzle, foi fácil montá-lo. difícil, agora, é conseguir desmontá-lo. e a primeira permissa a ter em conta - e lá volto eu ao Emídio e à sua forma gentil de nos apontar caminhos para podermos sair das nossas esquizofrenias -  é que os meus padrões de moralidade e de rectidão não são sempre os mesmos padrões de moralidade e de rectidão por que os outros se regem. nem têm de ser. nem posso fazer nada para que sejam. provo isso a mim mesma sempre que o tento, porque entro em guerra.
se aqui o 'porquê?' é inútil, o 'para quê?' é transformador: para eu ser fiel a mim mesma! o que significa que o próximo por quem sempre esperei sou eu mesma: numa versão que, a cada instante, pode ser corrigida e melhorada. e me permite ser 'obreira' e criativa a tempo inteiro, porque nunca há-de estar pronta: haverá sempre uma próxima Inês a ser conquistada!

sim, querido Emídio, 'este crescimento da nossa humanidade irá pedir de nós muito mais do que aquilo que se encontra dentro dos limites da nossa zona de conforto. mas irá garantir a nossa realização plena como seres humanos, seres espirituais e seres completos.'

e por isso à pergunta 'quanto vale uma sombra?' eu respondo: vale ouro! cada sombra que olhamos de frente vale ouro! vale bem a dor e o esforço de o escavarmos do fundo das nossas entranhas. de o resgatarmos, já não mais embaciado pela penumbra, mas brilhando em tudo o que somos.


sábado, 25 de junho de 2011

não desligue...

não desligo.
ah, sempre esta dúvida, afinal, sempre este medo de que o 'meu' técnico se volte a ir sem deixar rasto, mas ele ri-se e, ao rir-se assim, respira em mim, eu respiro nele, somos só um. 
quero fazer-te uma pergunta... - digo eu.
muito bem, assim há muito mais intimidade entre nós dois - responde-me ele, ao reparar que já o trato por tu.
como é que eu sei que não me estou a projectar em ti?
somos só um! - responde-me ele.
e rimos juntos da pergunta.
a seguir, ele fica sério, e outra vez cheio de doçura.
só projectas se me quiseres encontrar fora de ti.
fico calada, grata por haver alguém que me diz sempre a verdade e, mesmo assim, estou fartinha de saber que caio nisso muitas vezes.
não te culpes! - diz-me o técnico. 
que bom é ter uma voz iluminada a falar-me aqui de dentro! - digo-lhe eu.
muito bom, não tenhas dúvidas! mas de pouco ou nada serve a minha voz iluminada, a não ser que essa voz iluminada seja a tua.
que irritante, tu baralhas-me!
tu baralhas-te! - ri-se o técnico.
nós baralhamo-nos, então, é mais justo se a coisa for posta assim.
como queiras, és sempre tu que decides! uma coisa é certa, no entanto: ao mudares, os outros mudam.
e o que é que isso tem a ver com esta conversa?
tudo tem a ver com tudo, minha querida. só estou aqui para te lembrar.
que se eu mudar os outros mudam?
sim. ou então não aguentam ver em ti o que ainda não conseguem ou não querem ou não sabem mudar neles e, nesse caso, vão-se embora. 
andas a ler o Emídio?
ahahahaha! essa é boa! deixa lá o Emídio sossegado e não contornes a questão para a qual tanto queres uma resposta. sê honesta! mereces ser honesta, mereces ter a verdade de ti mesma. é de ti, e só de ti, que não queres e que não podes desistir, de certeza que te lembras de o ter escrito!
lá estás tu a irritar-me!
lá estás tu a irritar-te!
às vezes tenho a sensação de que ando em círculos. dou voltas e mais voltas e mais voltas apenas para chegar à conclusão que não saí do mesmo sítio.
agora estás a ser injusta! se olhares bem para os teus círculos, hás-de ver neles o movimento das espirais. é certo que sobem e descem e que nada te garante que só subas, sem que tenhas de descer, uma e outra e outra vez. mas já não estás onde estiveste. sobes cada vez mais alto, desces cada vez mais baixo. chama-se a isso consciência.
achas que sim?
não acho nada! só estou aqui para te mostrar o que tu tão bem já sentes.
e não desligas?
ah, agora és tu que me estás a irritar!...
mas somos um, ou não te lembras?
ok. então, dentro desse um, dividimos as tarefas: eu sopro e tu materializas. pode ser?


olá olá, minha querida!

olha, olha, quem é ele... 
o 'meu' técnico, a aparecer-me de voz viva, depois de tão longa ausência.
e a quem devo esta honra? - pergunto, surpreendida.
ora a quem? só pode ser a si mesma!
reparo que continua a respirar ao meu ouvido naquele seu tom que me arrepia e que o seu riso contagia a minha essência sem que tenha de esforçar-me.
pois então seja bem vindo! e o que me conta?
conto o que quiser ouvir, como é costume entre nós dois.
e de novo ri-se, rouco, e de novo eu me arrepio, mas ele prossegue.
ai tantas sombras, tantas sombras, minha querida!
e você conhece-as todas, imagino!
claro que sim! pois não sou eu o que sempre as ilumina quando a querem assustar?
e agora a sua voz cede à doçura a rouquidão, faz-se poema para poder rimar comigo, escuto atenta a luz que traz e que confia, com ternura, à minha alma.
sabe que mais? você é linda! linda, linda... e o Thomas tem razão quando lhe diz que negligencia a alegria.
sem pensar, ofereço-lhe o gargalhar das manhãs claras, sai-me límpido o olhar sobre a relva do jardim, relembro as fadas a contar do milagre da alegria que desejo e eu pequenina, num baloiço que há-de ser para sempre onde me rio da minha infância. tanto Verão à minha volta e eu sem notar que é daí que me ilumino, que também eu amadureço se não deixar que me apodreça a nostalgia, a indiferença, a raiva e o ressentimento.
do outro lado do fio, oiço o canto do 'meu' técnico a lembrar-me que a passagem das estações obedece à ordem intrínseca do cosmos. 
há que saber passar com elas, minha querida, colhendo aquilo que nos oferecem e plantando sempre a esperança em cada uma.
abraço o canto e dou graças por saber de novo ouvi-lo, por se ter reestabelecido a ligação entre nós dois, peço que nunca mais me deixe e ele então ri-se de novo, de novo rouco, um arrepio sobe ao meu peito, acendo o Verão nas minhas sombras para que se espraiem ao sol e se abram ao calor do céu azul.
conheço-as todas!
diz-me o técnico, e garante-me
não há nenhuma que precise de esconder, nem uma só que não mereça ser amada.
empurro agora a do baloiço e a seguir sento-me nele,  recortando a silhueta ao abrigo do poente, oscilo de um lado para o outro, subo e desço, faço desse movimento o meu caminho, a minha força.
boa, boa! - aplaude o técnico. e agora é ele quem me empurra essa fraqueza de não querer ser o que já sou. sinto a vertigem do céu todo, a liberdade de voar ao meu encontro, a tentação que há de cair quando se alcança uma altitude considerável que tememos ser mortal, o apelo de cada abismo que inventei para as minhas histórias.
boa, boa! - aplaude o técnico.
e então atiro-me para os seus braços.

'tu não me aceitas como eu sou'

se é, de facto, sempre de nós que falamos quando falamos de e para os outros, ao dizermos, seja a quem for,
'tu não me aceitas como eu sou'
não estaremos, no fundo, a dizer
eu não me aceito como EU sou?

mais um dia de sol. mais um dia mergulhando na sombra - e talvez mais logo no mar. e hoje acordei a pensar como posso eu não me aceitar como sou? não será antes 'eu não me aceito como eu NÃO sou'? e não me aceito como não sou, porque me falta aceitar que sou tudo - sobretudo aquilo que não gosto de ser. porque não quero descobrir - e muito menos quero que os outros descubram - o que nunca quis que se conhecesse de mim, o que aprendi a esconder, o que ainda me dói assumir que vive cá dentro, na sombra. 
e, no entanto, o que eu não quero ser também é o que eu sou. o que eu passo a vida a esconder é, afinal, o que eu projecto no outro, quando o acuso de não me aceitar como eu sou. 
e o falso alívio que me vem desta crença atenua-me a dor: não tenho de fazer nada, de mudar nada em mim, de revolver as entranhas em busca de feridas abertas, de descobrir o que nunca quis ser, porque quem fica com a 'batata quente' nas mãos é o outro, que não me aceita. 'azar o dele', penso eu, e chego a ficar satisfeita - aparentemente -, quando delego a incapacidade da aceitação fora de mim.

só mostrando a mim mesma onde é que me posso aceitar a ser tudo - sem vergonha e sem culpa e sem medo - deixará de ser importante se os outros me aceitam ou não. só assumindo que também sou o que tanto me esforço por não querer ser, serei capaz de resgatar a minha totalidade. e mesmo que tudo seja - só e ainda - um exercício mental, uma das muitas teorias tão sábias que, como diz a minha filha Francisca, não sei pôr em prática, também não vou mais culpar-me por isso. aceito que, por enquanto, é isso que eu também sou: uma 'teórica iluminada' com certas dificuldades de ordem prática.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

'és o exemplo que o mundo aguarda'



escreveu o Emídio, quando hoje partilhou o meu texto 'mais sombra' no seu mural do FB. sorri. lembrei-me de lhe ter dito, naquele workshop que fiz com ele, 'és uma pessoa que admiro imenso' e de ele me ter respondido 'estás a projectar, estou-me nas tintas para a tua admiração!'
quando, enfim, entendemos o mecanismo das projecções - e mesmo que o caminho da mente para o coração seja lento e, na maior parte das vezes, difícil - e ousamos começar a aplicá-lo na prática do dia-a-dia, espantamo-nos como foi possível resistir tanto tempo!...

depois da manhã no jardim, espiando as minhas sombras na sombra das árvores e fazendo por desmontá-las com a ajuda da escrita, fui para a praia. a areia escaldava-me os pés, o sol estava a pique, fui incapaz de me expor aos seus raios e abri o chapéu. delicioso!, lá estava eu na sombra outra vez :) aproveitei a presença do T., da M. e da F. e pedi-lhes que, por favor, pensassem em três defeitos e três qualidades que encontravam em mim. também lhes pedi que não os dissessem à frente uns dos outros e que levassem o tempo que fosse preciso.
pouco depois, o T. estendeu-me o telemóvel, onde tinha escrito o que eu lhe tinha pedido. o T. é austríaco e falamos em inglês um com o outro. achei querido, quando me explicou que não tinha querido pensar em 'defects' e 'qualities', mas sim em 'neglected qualities' e 'qualities'. na sua opinião, as minhas qualidades negligenciadas eram a empatia, a alegria e o gosto pela música. quanto às qualidades, o T. considera-me criativa, activa e aberta de espírito. agradeci e provoquei-o: 'agora, se quiseres, descobre onde negligencias a empatia, a alegria e o gosto pela música... e descobre onde és criativo, activo e aberto de espírito!'
a M. é a minha irmã mais nova e, por isso, conhece-me bem. mas reparei que não era assim tão fácil apontar-me três defeitos e três qualidades. por fim, lá me disse: 'és criativa, empreendedora e generosa. o problema é que, mesmo sendo generosa, és egoísta. és instável. e és alguém com quem não se pode contar... quer dizer, também és alguém com quem se pode contar, mas nunca se sabe...'
finalmente, a F. - que é a minha filha mais velha - descreveu os três defeitos e as três qualidades da seguinte maneira: 'a mãe tem ideias mesmo boas e teorias mesmo certas! nesse aspecto, é uma sábia. o problema, ou o reverso desta sua qualidade, é que não as põe em prática! depois, é muito paciente. sobretudo, com as suas mandalas e com os seus mapas. mas não tem paciência nenhuma para os filhos! finalmente, considero um defeito a mãe dizer aos outros o que devem fazer e depois a mãe, afinal, não fazer nada disso. diz-nos para não fumarmos... e fuma. diz-nos para não gritarmos... e grita!' faltava uma qualidade e a F. hesitou entre 'escrever muito bem' e ser 'aberta de espírito'.

se me perguntarem se descobri alguma Inês que não conhecia... tenho de dizer a verdade: conheço-as a todas. mas, continuando a dizer a verdade, há umas de que não gosto nada! da Inês que negligencia a alegria e a empatia; da Inês instável; da Inês que não pratica as teorias; da Inês que diz para os outros não fazerem... e faz. 
o passo seguinte, calculo, é descobrir de que forma a Inês que negligencia a alegria e a empatia me pode ser útil. como é que uma Inês instável me pode dar estabilidade? como é que das teorias posso passar à prática?...

o dia ainda não tinha acabado, mas eu tinha ainda na sombra as Ineses que o meu amigo me tinha sugerido que 'trabalhasse': a malcriada, a bruta, a ciumenta e possessiva, a injusta, a que acusa e fabrica bodes expiatórios, a mentirosa, a interesseira, a falsa... uau! tantas! mas... sabem que mais? descubro o quanto a escrita sempre foi preciosa para que nenhuma, de facto, me consiga apanhar desprevenida ou em profundo estado de negação quanto à sua existência-fantasma. a criação de personagens, nas minhas histórias, sempre deu aso a que as minhas Ineses da sombra pudessem ter voz e isso, reparo agora, foi uma ajuda fantástica para que este processo vá podendo avançar!
e, então, com a mesma frontalidade com que olho para as Ineses onde o meu amigo projecta as suas sombras, mesmo que ainda não saiba nem queira vê-las, olho para todas aquelas que, também eu, projectei nele. e somam-se à longa lista: a arrogante, a manipuladora, a controladora, a infiel, a insensível, a inconsistente, a inflexível, a coitadinha, a doente...

eu não sou o exemplo que o mundo aguarda! - mesmo aceitando, e sem corar de vergonha ou pudor - os elogios do Emídio. sou, isso sim, o exemplo que EU própria aguardo. se não o der a mim mesma, como posso esperar recriar-me, mudar-me, fluir, fluir, fluir com a vida? e se, ao fazê-lo, ponho o meu dom de saber escrever ao serviço dos outros... que bom para mim!

mais sombra

'o Caminho da Sombra não é para os fracos. é para os que têm a coragem de expor os seus segredos, as suas raivas, as suas vergonhas. e perdoar-se por tudo o que são e tudo o que não são. é viver a partir do coração e não da mente. é ser quem é sem medo do que os outros vão pensar ou dizer.'

está um dia de sol radioso e talvez seja mais fácil, por isso, voltar a optar hoje pela sombra. não a das árvores do meu jardim, que me refresca e protege do calor excessivo do Verão, mas a que ao longo de cada estação da minha vida se foi tornando tão densa que hoje me chega a parecer um emaranhado de trevas. há, então, que encontrar o fio dessa meada confusa e, a pouco e pouco, sem me dar tréguas, ir desfazendo o novelo.
hoje, no reverso da Inês independente e senhora do seu nariz, segura das suas opções e 'dura na queda', encontro-me com a Inês dependente, insegura, desejosa de cair no primeiro par de braços que se abram para ela. sim, teoricamente já sei que o primeiro par de braços é meu, que enquanto não me abraçar por inteiro todos os abraços alheios serão só projecções, mas aqui me confesso que isso não é - por enquanto - aquilo que verdadeiramente pratico. sem vergonha e sem medo, confesso que (também) sou dependente: das relações amorosas, de que aprovem os meus comportamentos, houve uma altura em que já fui dependente de drogas e em que fumava charros todos os dias, lembro-me de ser pequenina e de pedir colo ao meu pai, durante uns longos passeios pelos pinhais de Fiais, e de ele responder 'se tem perninhas, é para andar!'
e, no entanto, hoje percebo como essa Inês dependente me tem sido útil ao longo da vida, sempre que lhe dou espaço para pedir aquilo de que precisa - que seja somente aquilo que deseja na altura - sem sentir culpa ou qualquer espécie de inferioridade. é graças a ela que peço ajuda, quando me sinto incapaz de resolver qualquer coisa sozinha. é por ela existir que, tantas vezes, permito que os outros cuidem de mim. foi ela, aliás, e reconheço-o agora, que me impulsionou a empreender este caminho da Sombra, mostrando-me que, se tivesse mantido a bola da senhora-do-seu-nariz-independente-e-segura-de-si-que-não-precisa-de-nada debaixo de água... ainda lá estava: a afogar-se nas suas mágoas, em vez de a fazer por trazê-las à tona.
tenho perninhas e são para andar, é verdade. mas que bem que me sabe um pouco de colo quando me sinto cansada, que bem que me sabe poder contar com os outros, que bom ser os dois lados da mesma moeda e descobrir como a inter-dependência uns dos outros pode fazer do mundo um lugar onde a entre-ajuda se reflecte num ganho para o Todo. 

lá fora, o sol continua a brilhar. ilumina-me as sombras. pego agora na Inês corajosa, para poder descobrir e abraçar a medrosa. sim, também já sei - teoricamente e na prática - que o amor e o medo são forças opostas. é, aliás, o binómio mais proclamado na história dos homens, o que toda a gente quer reduzir a uma parcela para que se acabe de vez com esta tortura de não sermos capazes de nos amarmos, a nós e aos outros e a tudo o que existe, incondicionalmente. 
honestamente, olho para mim e pergunto: queres realmente acabar, assim de repente, com a Inês que tem medo? não será isso, mais uma vez, remetê-la para a sombra e permitires que fique sozinha, de cada vez que os monstros vierem espreitá-la? consegues, de facto, nesta altura da tua vida, assumir que já não precisas dela para nada? com calma, recordo todas as vezes em que me foi útil ter medo de alguma coisa ou de alguém. e reparo como tudo está interligado: foi o medo da Inês dependente que me fez, por exemplo, nunca ter experimentado heroína. foi o medo da Inês ruidosa na escrita que me fez procurar o silêncio. é o medo da Inês maldosa que me permite chamar pela bondosa - o que nem sempre evita as maldades, é certo, mas que às vezes permite que me perdoe e/ou que peça perdão por essas maldades.
opto, então, por pegar ao colo na Inês que tem medo e, com muito amor, prometer-lhe que, eventualmente, será capaz de o enfrentar e, até, de o vencer e que, se não for, a amo na mesma. ou seja, escolho mantê-la, sim, ao meu lado, e reparo como é tranquilo não ter mais de lutar para que me deixe ser o que não sou: a-Inês-que-não-tem-medo-de-nada.

com o sol a brilhar sobre a relva, que daqui me parece um manto verde de esperança oferecido por deus, visito o castelo de que fala o Emídio. dou-me conta de como existem ainda, no seu interior, aposentos fechados, bolor, humidade, prisões. de como existem ainda portas que não ouso abrir - para já. tantas Ineses que fui rejeitando, asfixiando, calando. umas porque me envergonham, outras porque me denunciam, outras ainda porque, talvez, nem sequer me dê conta do que irão provocar quando as trouxer para a luz do meu jardim.
e, agora sim, vou ali deitar-me à sombra das árvores de fruto e agradecer-lhe a frescura com que me brinda...

p.s. acabei de receber um email de um querido amigo que, prontamente, e calculo que depois de ter lido este meu texto, se disponibilizou para me ajudar, sugerindo o seguinte: 'para o caso de quereres trabalhar mais algumas Ineses: a malcriada, a bruta, a ciumenta e possessiva, a injusta, a que acusa e fabrica bodes expiatórios, a mentirosa, a interesseira, a falsa...'
fico-lhe grata: nenhuma delas me é desconhecida e, a seu tempo, lá irei. como tão bem escreve o Emídio, 'quando observar um comportamento humano, qualquer comportamento humano, e for capaz de afirmar 'eu sou assim', ao nível mais profundo do seu ser, então será capaz de se aproximar da verdadeira iluminação.'
retribuo, então, a ajuda ao meu querido amigo: malcriado, bruto, ciumento e possessivo, injusto, que acusa e fabrica bodes expiatórios, mentiroso, interesseiro, falso...
pode ser que um dia cada um de nós seja capaz de se aproximar da verdadeira iluminação :)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

sombra

'por cada ciclo de criação, há um ciclo de destruição'

quando, há umas semanas atrás, num rápido workshop sobre a Sombra, o Emídio me pediu que dissesse qual a melhor qualidade que reconhecia em mim, não hesitei um segundo: criatividade! disse-o segura do que estava a dizer, com um sorriso. várias outras pessoas foram chamadas a responder à mesma pergunta e cada uma deu a sua resposta. a seguir, foi-nos pedido que pensássemos, desta vez em silêncio, nos opostos das qualidades expressas. hesitei. 'improdutividade', 'preguiça', 'monotonia' e 'copiar' foram as palavras que me surgiram.
hoje à tarde, na praia, e depois de ter passado a manhã a ler uma parte do livro que o Emídio disponibilizou para download - a Sombra Humana -, voltei a sentir essa criatividade que sai quase sem esforço de mim em quase tudo o que faço, desta vez no simples juntar de um molho de conchas para fazer uma pequena mandala. 'sou tão criativa!' é um elogio que sempre fiz a mim própria, sim. 'és tão criativa!' é um elogio que sempre ouvi dos outros, é verdade. foi então que, sem mais nem menos, destruí a pequena mandala que tinha feito e que descobri o oposto da Inês criativa: a Inês destrutiva!
recuei à minha infância e revi uma cena que se repetia com imensa frequência. depois de convidar os meus irmãos para brincarem comigo às casinhas, e de as montar com paciência e perícia com almofadas, cadeiras, mantinhas, havia qualquer coisa dentro de mim que me impelia a destruí-las, tantas vezes antes ainda de ter dado início à brincadeira. a seguir, revi outras cenas idênticas. e, por trás, ouvi claramente a voz dos adultos que me diziam: 'que pena! fazes coisas tão lindas e depois estragas tudo!'
é óbvio que a Inês destrutiva não resistiu muito tempo a este 'que pena! fazes coisas tão lindas e depois estragas tudo!' ou antes: é claro que a Inês destrutiva resistiu, mas escondida, algures dentro de mim. não deixou de ser destrutiva, mas passou a 'destruir' pela calada. ou seja, começou a esconder - de si própria e dos outros - que fazia coisas tão lindas e que estragava tudo a seguir. 
agora mesmo, enquanto escrevo estas linhas, faço por aceitá-la, chamá-la e torná-la minha aliada. se por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição', eu preciso - muito! - da Inês destrutiva para me destruir, re-criar e viver mais um ciclo...

'és a pessoa mais bondosa que eu já conheci'

dizia-me ontem alguém muito próximo, acrescentando a seguir: 'fizeste de mim um homem melhor.' ontem ainda, depois de me ter dito isto, sorri e respondi-lhe: 'não estás a ver mais do que a bondade que existe em ti.' hoje, revi as maldades que fiz a este homem - e acreditem que foram algumas. a seguir, lembrei-me de ter ouvido dizerem-me, tantas vezes quando era pequena, 'és um diabo com um coração de ouro' ou 'a seres uma flor, eras o cacto: porque tens picos, mas dás uma linda flor.' e é-me difícil sentir onde se separam e onde se juntam a boa e a má. é-me ainda díficil sentir se a sombra da boa é a má ou se é a sombra da má que é a boa. porque, se quiser ser honesta, tem dias em que me dá imenso prazer ser a boa e outros em que me dá imenso prazer ser a má. e então talvez nenhuma das duas tenha ficado verdadeiramente na sombra, talvez nenhuma das duas esteja na luz, talvez esta seja uma dualidade que sempre aceitei, afinal, e que eu não seja nem boa nem má, mas alguém - como toda a gente que existe no mundo - que é capaz de fazer coisas boas e coisas más...

'a tua escrita faz muito ruído'

foi uma 'acusação' que ouvi inúmeras vezes ao longo dos últimos tempos. e foi tal o incómodo que, a certa altura, calei-a: à escrita. e, no entanto, durante que tempos também, centrei-me onde não era realmente importante centrar-me: na 'acusação'. desta perspectiva, é óbvio que não era possível ver mais do que uma grande injustiça. como é que alguém se atrevia a dizer que a minha escrita fazia muito ruído? e, se isso me incomodava assim tanto, onde é que estava o ruído? 
foi necessário muito silêncio para sentir que o 'ruído' - em mim, e já não na perspectiva de quem me acusava de o fazer - era uma des-sintonia entre o que eu escrevia e o que eu realmente fazia. o 'ego espiritualizado'  é um 'personagem' que tem vindo a ganhar muito relevo nesta era dita 'new age' e, como não sou excepção, encontrei-o em mim. está tão bem montado que há dias em que acredito ser realmente uma 'iluminada'! e em que vou buscar a 'espiritualidade lindinha' para servir de verniz à minha escrita... esse é, então, o ruído. e, no entanto - e aqui estou eu a escrever outra vez - se há um propósito naquilo que escrevo - para além do gozo imenso que me dá escrever só por escrever - é a 'terapia' que faço a mim mesma, quando me ponho à mostra e à vista de todos os que me queiram ler. e pôr à mostra, mais uma vez, não é escrever tudo 'lindinho': é cuspir também o que é sombra cá dentro. por alguma razão, durante anos a fio, escrevi num blog onde não dava a cara. chamava-se conta-me tudo, ao princípio, e mais tarde de vidro e de outras substâncias anónimas, e eu assinava Sophia. está cheio de sombras cuspidas, mas não havia ainda a coragem para assumir que quem as cuspia era eu e que a Sophia era só uma máscara...

e no resto - que ainda é quase tudo - já sei o que sinto. mas, para sentir de verdade o que sei, nada como continuar a 'cuspir-me', a despir-me, a destruir-me, a re-criar-me a cada dia que passa...

terça-feira, 21 de junho de 2011

o verão veio para ficar



e para que a vida amadureça 
o que as árvores nos oferecem. 
e então será só nossa a alegria das colheitas. 
a esperança 
de nos vermos transformados 
nessa seiva das sementes que plantámos junto ao peito, tornadas frutos da paciência dedicada 
a cuidar para que crescessem. 
humildemente, 
há que acolhê-lo, 
dando graças por ser manso, 
azul por dentro, 
luz acesa sobre o mar do nosso espanto.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Plutão

Plutão é seguramente o planeta que melhor traduz a energia da sombra e aquele que, implacavelmente, nos obriga a olhar de frente para a morte, sem qualquer espécie de filtro, sem nenhuma complacência ou pieguice. lembro-me de ouvir a minha amiga M., há uns tempos, a dizer-me: 'com Plutão, não tens hipótese. o abismo está ali, à tua frente. ou saltas, ou és empurrada.'
e assim tem sido, a M. tinha razão. ora saltando, ora empurrada, temos estado frente a frente, eu e a morte, a morte e eu. ela a querer que eu lhe dê luta, eu a querer que me dê paz, ela ao ataque, eu à defesa, ela activa, eu reactiva, caíremos muito em breve nos braços uma da outra, essa é a esperança, esse é o trânsito da sombra a fazer, em simultâneo, quadratura ao meu Sol e à minha Lua.
nenhuma morte quer levar-nos se não for para renascermos e o propósito é só esse: mergulhar de cabeça num abismo assustador, deixar que tudo me doa, que lentamente a morte seque o que ainda arde e ainda sangra, que dissolva o que resiste, que me esventre as ilusões, me congele a temperatura e me devolva enfim à vida, quando enterrar tudo aquilo que já não serve e não respira.
é dura a morte, mas mais duro é ir morrendo aos poucos viva, apegada à podridão das velhas crostas, à humidade e ao bolor de antigas feridas, muito mais duro do que o abismo é ir caindo em queda livre, sem ousar bater no fundo. de cada vez que não deixamos que nos mate, a morte vem e mortifica-nos e, isso sim, é o desperdício da vida.
não sei bem a quantos graus anda o Plutão, se ainda vai bater no Sol, se ainda irá mexer na Lua, mas sei cada vez melhor onde é que a sombra ainda se esconde, onde é que ainda tem vergonha, de onde é que tenta fugir, vejo cada vez mais clara a luz ampla que me guia, estou quase a deixar que a morte me devolva inteira à vida, co-criando-me quem sou - luz e sombra - dando graças pelo abismo onde lutei com os meus fantasmas, dando graças pelo dons e, humildemente, aceitando cada mão que me é estendida, cada festa que tem vindo ao meu encontro e me garante que os anjos velam por mim.
afinal, a morte é doce e Plutão é generoso, pois ao passar destruíu-me pela dor, mas deixou-me o seu imenso poder regenerador para que eu própria me acolhesse com amor e pudesse resgatar a força da minha luz.

domingo, 19 de junho de 2011

mudei de anel

mas a intenção persiste: casar comigo. e, no entanto, já não digo como disse algumas coisas... já não digo que é muito mais complicado deitar-me todas as noites e abraçar-me sem reservas. pelo contrário, é tão mais simples! e sempre com a garantia de os braços estarem abertos. já não digo que é mais duro exigir fidelidade àquilo que sou, pois passou a ser tranquilo ouvir-me bem e, ouvindo-me, sentir que só me engano se ficar com quem se engana. já não digo que é mais justo e verdadeiro dizer 'amo-me' do que andar a cobrar a injustiça de o outro não dizer 'amo-te': é sempre justo e verdadeiro dizer 'amo-me', sempre justo e verdadeiro dizer 'amo-te', quase diria que é até a mesma coisa, um verbo só que se dá e se recebe ao mesmo tempo e se conjuga sem ter medo. 
já não digo que o meu primeiro casamento 'acabou' com um atropelamento ou que o segundo 'não deu certo'. de cada um guardo intacta a vivência do amor na expressão que me foi dado a conhecer e estou grata por ter tido essas experiências. mas, sobretudo, e apesar de não ter falado nisso nesse outro texto que escrevi, já não temo esse bicho a que chamei anos a fio de 'solidão' e que me comia as entranhas de cada vez que imaginava não ter mais com quem casar, porque isso está garantido! saiba eu seguir, sentindo, o milagre de me ter sempre comigo e está selado o compromisso de não mais me separar.

dá-me a mão

e levo-te aos lugares de ti que, com o tempo, foste deixando ao abandono. não tenhas medo, prometo que não te largo, não te deixo um só segundo e, à medida que fores ganhando a coragem de espreitar cada um dos teus abismos, aperto-a com mais força ainda. é pequenina, eu sei, mas cabe tão bem na minha... podes debruçar-te a ponto de sentires vertigens, estou aqui. podes até ousar cair. e, nesse caso, cairemos de mãos dadas. ou então, se estiveres com muito medo, pede-me colo. assim, vês, pões-me os braços à volta do pescoço e enlaço os meus à tua volta, temos as duas muita sorte: tu, por seres ainda pequenina e caberes inteira em mim, e eu por já ter crescido e ser capaz de te dar colo. anda. podemos começar devagarinho. eu dou o primeiro passo... tu dás o primeiro passo. por onde queres começar? talvez pelos lugares que estão fechados há mais tempo? consegues levar-me lá? se quiseres, podemos ir cantando à medida que avançamos... isso mesmo. as canções espantam os medos e somos bem capazes de fazer um belo dueto, tu e eu, mas não é obrigatório e, se preferires, podemos seguir antes em silêncio. ou então podes chorar. podes rir, podes gritar, espernear, o que quiseres, eu estou aqui. vamos ao lugar dos mortos, queres? vamos ao lugar da espera, ainda te lembras? durante quanto tempo alimentaste a chegada de quem afinal não chegou a vir com vida conhecer-te? e como podias tu saber, naquela altura, que não foi para te privar de companhia que aquilo tudo aconteceu? vamos entrar, queres? abro as janelas para que vejas que a escuridão só existe no teu peito e que não há, afinal, nenhum lugar onde te engula. abro o teu peito para que sintas como a luz jorra límpida e talvez compreendas o que na altura não sabias: que a espera foi criada para que um dia regressasses a ti mesma e, juntas, como agora, pudessemos celebrar esse regresso de mãos dadas... e então podemos ficar aqui o tempo que for necessário...

sexta-feira, 17 de junho de 2011

zoom out

amplia.
e repara como se pode abarcar cada vez mais paisagem sempre que não nos detemos num só pormenor. a vida cheia de cores e, por alguma razão, só vemos o preto. só vemos o branco. que seja só o azul ou só o vermelho, mas nada é só neste mundo. não existe um único traço que não se prolongue, um rasto que não nos conduza ao rumo seguinte, até o silêncio é precedido de som para que sejamos capazes de ouvi-lo, e é do silêncio que surge uma nova batida para tudo.
observa.
não há uma única coisa que não se transforme na coisa seguinte, não há um só dia que permaneça intacto na luz, tem de haver noite e escuro para que se volte a acender o dia seguinte. não há primavera a não ser quando o inverno termina, a não ser quando insistimos no frio e nem sequer reparamos que os campos floriram e então ficamos ali, embaciando os olhos com chuva e recusando o renascimento constante da vida.
expande.
e onde só vês o esvoaço de um pássaro passas a ver altitude, onde apenas vislumbras o mastro de um barco começas a ser o próprio balanço do mar, onde antes havia um único e estreito caminho revelam-se passos, sentidos, e caminhar deixa de ser o cansaço do corpo para se transformar no movimento incessante do espírito.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

a m o r [ t e ]

assim estava eu, há vinte anos atrás: vestido branco comprido de noiva, véu nos cabelos que tinha deixado crescer, um bouquet - piroso! - de rosas nas mãos, a posar no jardim de Pedrouços para o álbum das nossas memórias, enquanto tu esperavas, nervoso, que à última hora eu não aparecesse e deixasse vazio o altar dos teus sonhos.
sonhaste-me,
e sabes,
muito mais do que eu.
por alguma razão, alguma emoção ou mesmo mistério, eu era a mulher dos teus sonhos e esperavas de mim que viesse cumpri-los:
amar-te e honrar-te e ser-te fiel todos os dias das nossas vidas.
palavras à parte, é assim que tem sido. um amor à prova de gritos, apelos, posses, apegos, expectativas, cobranças, criando os filhos no privilégio e na honra de ser a mãe terra e tu o pai céu, fiel à essência benigna e comum a todos os seres.
celebro, então, isso contigo. esta certeza de que o amor não é o que vulgarmente chamamos de amor, mas a mais pura energia da cura e da conexão com o espírito. celebro a tua presença na minha vida, que não carece de provas nem de demonstrações de espécie nenhuma, celebro a esperança de que a humana idade me traga mais consciência e mais maturidade para que, um dia, me volte a casar com a mesma verdade com que hoje me sinto casada contigo.
sim, na terra não somos - ainda - à prova de gritos, de apelos, de expectativas, de posses, de apegos... cobramos do outro o que, afinal, só a nós próprios podemos pedir, mas eu acredito
e tu sabes que eu acredito
que esse é o caminho, que é esse o milagre e que os encontros, os re-encontros e os desencontros revelam, a cada agora, de que forma podemos tirar ensinamentos dos passos que damos, uns à frente, outros atrás, e como cada experiência nos mostra onde é que ainda repetimos padrões e onde é que já somos capazes de os transcender.
na terra, a forma mascara o conteúdo e tantas vezes deixamos que o quadradinho seja a medida para aquilo que não tem, afinal, enquadramento possível. pode ser longo e penoso o caminho que nos leva da cabeça para o coração, mas há doze anos que o faço contigo e não desisto de o repetir com alguém cá em baixo...
porque, de facto, meu querido, hoje podia estar triste e não estou. podia estar para aqui a consumir-me no filme do que ficou por viver entre nós, vestida de escuro e de luto, muito mais do que de branco e de noiva, a atolar-me na pena que sinto por não te ter ao meu lado a dar colo aos filhos, na tortura que são as saudades das festas, na viola e na voz silenciadas em casa... e, no entanto, por tudo dou graças. pela luz que me envias, pelos sonhos de que me despertas, por velares pelos filhos, por ocupares a orla das portas e me mostrares que estão sempre abertas, até pela voz com que entoas os hinos do céu e cujo eco oiço na terra, no vento, no mar, no meu peito.
vinte anos depois, dou graças por me teres sonhado com tanta verdade e por me teres levado ao altar. por essa morte que não foi mais do que deixar de te ver com os meus olhos humanos e que me abriu a alma para paisagens mais vastas. é uma honra e um privilégio, uma sorte! estar, há vinte anos, casada contigo, uma aprendizagem que tenho vindo a fazer, uma esperança e uma certeza de que não abdico: de que o caminho a dois se faz em verdade e partilha e de que o amor assim é na terra como no céu a energia mais pura da conexão e da cura.