quinta-feira, 31 de maio de 2012

who cares ?



é um bom truque. usei-o milhares de vezes e há dias em que ainda o uso. costumava resultar, este meu truque. com a minha mãe, por exemplo, resultava muito bem. fechava-me no quarto e saboreava a insistência com que ela batia à porta e me pedia 
vá lá, deixa-me entrar.
e eu que não, que não deixava, e ao mesmo tempo desejando que insistisse, que não deixasse de pedir-me
vá lá, deixa-me entrar.
e, às vezes, eu deixava e o bem que me sabia!, confirmar que se importava, que me amava a ponto de não permitir que me trancasse ou que ficasse a tarde inteira a consumir-me, o bom que era ser capaz de consolar-me, mas também havia dias em que ela desistia e me deixava entre a raiva e a frustração, entre a carência e a agonia, imbuída em auto-comiseração e com a certeza - absoluta! - de que, afinal, a minha mãe já não me amava.
o mesmo truque foi usado com o pai, com a avó, com as tias, com amigas, namorados... e assim me afeiçoei a ele. mais do que um truque, era uma forma de aferir até que ponto é que os outros se importavam, até onde é que estavam disponíveis para amar-me e em que medida é que valia a pena investir neles.
e se hoje em dia ainda recorro ao truque, se muitas vezes continuo a erguer muros para que os outros os derrubem e me provem que se importam, para que venham dar-me colo e 'destrancar-me' o coração, também descubro que ninguém, a não ser eu, pode fazê-lo. só eu construo ou descontruo o que me une ou me separa. só eu me importo o suficiente para ir tendo a consciência de que ninguém derruba os muros que vou erguendo à minha volta a não ser eu.



segunda-feira, 14 de maio de 2012

*.






há dias que não cabem nas palavras porque as excedem. 
porque propositadamente as excluem.
..

hoje foi um desses dias *.

terça-feira, 8 de maio de 2012

atiras-te


na direcção dos meus braços e não tenho como não te acolher. há muito tempo que dizes que os abismos te atraem, que passas os dias à beira de precipícios, arribas, falésias, que é para tudo aquilo que te provoca vertigens que corres. mostro-te o disparate que é gostar do assombro quando nele não existe mistério nenhum, apenas lacunas, a inutilidade de te vires despenhar no meu colo com a estúpida esperança do caos...
há uma ordem na pele, ou não sabes?, uma elasticidade nos músculos, uma espécie de amparo na matéria que não permite que as almas se matem, um desígnio qualquer que impede que morram, por mais que os teus ossos estalem de encontro aos ossos do tempo e, mesmo assim, tu atiras-te. atiras-te à espera que eu feche os braços, 
é isso? 
à espera que o precipício te engula, que no chão da falésia o mar te dissolva e que seja a espuma, muito mais do que o sangue, a substância que irá dar brilho às estrelas.
atiras-te, 
vê só que ironia!, 
como se os braços não fossem os teus, afinal, não reparas sequer na penugem que os cobre, como se as asas humanas da mortalidade não pudessem cumprir o desejo que tens de voar, voar em vez de cair, voar em vez de atirar com o corpo para o fundo de um poço que o espaço não tem, voar em vez de mentir e ainda ontem te disse que é só na verdade que posso acolher-te, 
ou não disse? 
já te falei mais de mil vezes nas crenças que temos, mas que não passam disso, mostrei-te lugares que nem as palavras sabem dizer, acolhi-te de todas as vezes em que te atiraste, imagino que na expectativa de adivinhares o futuro e vê só no que deu, repara como é inútil fugir ao presente, a não ser para rapidamente o transformares em passado sem que o tenhas vivido, provado, sem teres saboreado um único dia de chuva, tal era a ansiedade com que esperavas pelo sol,
faz sentido?
é provável que não, que para quem nos veja de fora não faça sentido nenhum, que ninguém compreenda do que falamos, nós duas, quando uma se atira nos braços da outra e a outra não tem como não se acolher a si própria e o disparate que é,
estás a ver?
gostar do assombro quando nele não existe mistério nenhum.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

ontem

um amigo dizia-me que estava cansado das exigências de uma relação. nem sempre percebo, quando os outros me falam dos seus vários cansaços, ou até de outras coisas que sentem, por isso também não sei se percebi qual era, afinal, o cansaço a que ele se referia. porque é dele, não é meu. 
temos esta mania de que somos capazes de vestir a pele dos outros e de sentir o que eles sentem. não somos. mesmo assim, procurei na minha pele o cansaço. procurei todas as relações que me desgastam ou que sinto que exigem de mim o que acredito que não tenho para dar. não houve uma só que escapasse! a relação com a minha mãe, por exemplo. cansa-me ouvi-la a desfiar as doenças e a contar-me das idas ao médico e a pedir-me que dê atenção ao seu sofrimento. cansa-me, a relação com o meu pai, quando me faz mil perguntas sobre o que ando ou não ando a fazer, quando parece exigir que eu faça mais e melhor e me diz que tem pena de me sentir tão aquém das minhas capacidades. cansa-me, a relação com a minha filha mais velha, ultimamente numa montanha de altos e baixos, ora a rir-se que nem uma histérica, com a música aos gritos, ora a chorar-me nos braços e a perguntar-me "porquê" porquê? porquê?" cansa-me, a relação com o meu filho, às vezes tão malcriado que só me apetece dar-lhe tabefes na cara, abaná-lo e perguntar-lhe se acha que a vida é só futebol, obrigá-lo a estudar, pedir-lhe satisfações quando tem negativas nos testes. cansa-me, a relação com as duas mais novas. quando uma quer saber, naquele exacto momento, se pode convidar vinte amigos para os anos - que só irá fazer dali a seis meses - e a outra me esgota a paciência, quando demora vinte minutos a engolir um prato de sopa. 
cansa-me, sim, o quotidiano de que também são feitas as relações. cansa-me ter de gerir as rotinas, as expectativas, as ilusões e as desilusões, os contratempos, os desacertos, os ritmos... cansam-me, acima de tudo, os mil pensamentos que caem, a cada segundo, sem que eu sequer me aperceba. 
no fundo, o que mais me cansa é pensar. 
se for honesta, não é a relação com a minha mãe que me cansa, mas a ideia de que é cansativo ter uma mãe sempre a queixar-se e a expectativa de que seria tão bom se parasse. que descanso seria, se o meu pai nunca mais me perguntasse mais nada, porque só de pensar que vai perguntar, já fico cansada. se a filha mais velha não andasse aos altos e baixos, e os meus pensamentos aos altos e baixos, aos altos e baixos, aos altos e baixos, cansava-me menos. se não pensasse que o meu filho devia pensar noutras coisas, não me cansava a pensar nas coisas em que acho que ele devia pensar.
confuso? talvez. mas reparo que o cansaço, o cansaço maior, vem do que exijo de mim. que a relação que mais me desgasta, e afinal a única que posso mudar, é a que tenho comigo. cansa-me, aquele eu que se queixa e que me pede que dê atenção ao seu sofrimento. cansa-me o eu que me diz que estou aquém das minhas capacidades e que devia fazer muito mais do que faço, cansa-me o eu que vem dar aos meus braços num pranto e que me pergunta "porquê? porquê? porquê?". cansa-me acreditar que devia pensar noutras coisas e, afinal, pensar sempre nas mesmas. cansa-me antecipar, talvez não festas de anos, mas futuros para todos os planos, pormenores para cada um dos meus sonhos, cansa-me sobretudo pensar que provavelmente não sairão como quero, não serão como sonho. cansa-me demorar tanto tempo a engolir tantas coisas e mastigar outras tantas... 
canso-me, canso-me imenso, canso-me tanto, quando a relação que tenho comigo não me satisfaz, quando penso em tudo o que queria fazer, em vez de estar atenta ao que faço, ou quando penso que devia ter feito isto ou aquilo de outra maneira, quando penso em desfazer o que fiz e, em pensamento, desfaço e refaço e desfaço e refaço e desfaço e refaço... canso-me. quando penso mais logo, mais tarde, quando penso "e se?", "e depois?", quando vou buscar provas, acontecimentos, razões para me convencer de que tudo o que penso é verdade.
e então não sei se era deste cansaço que o meu amigo me falava ontem, se era desta exigência da mente, que nos faz estar sempre a pensar numa coisa qualquer, deste constante ir e vir que temos connosco, desta relação entre o corpo e a mente e o espirito, de todas as partes a que é preciso atender para sermos um todo. este cansaço de todos os dias nos vermos ao espelho, de nos relacionarmos com facetas de nós de que não gostamos, este cansaço de nos sentirmos humanos e frágeis e cheios de defeitos e a canseira que é, levarmos com isto todos os dias, sem nunca podermos fugir à relação que temos connosco e, acima de tudo, aos pensamentos que nunca paramos de ter :: sobre nós próprios e sobre os outros.



t e r r a *.


hoje voltei a lembrar-me. já noutro dia me tinha lembrado, quando cheguei ao ar livre e me cheirou a terra molhada. e precisei de tocá-la, porque só o cheiro não chegava, tinha de tê-lo colado aos meus dedos, apeteceu-me esfregar a cara, o corpo, a pele toda, queria que tudo tivesse a textura da terra, como daquela vez na cabana, em que suei e gemi de encontro ao seu ventre.
ando a revolver as águas maternas, talvez seja por isso que choro
ultimamente tenho chorado
tem chovido e o cheiro da terra devolve-me ao útero, reconduz-me às entranhas, aos lagos fecundos e femininos do corpo, às dores ancestrais das mulheres, à gestação dos afectos, à humidade do mundo. 
mães. é disso que tenho andado a tratar e, neste momento, tenho uma a queixar-se, uma mãe de papel que se queixa da ausência do pai, da ausência dos pais, como se assim só fosse metade.
metade de mãe.
levará o seu tempo até que descubra onde é que se parte, pode até ser que nunca descubra, ainda não sei.
chove e a terra traz-me a promessa: não há nada que me separe. e volto ao colo que me dá, de cada vez que me rendo. volto a lembrar-me de tudo, até sem saber o que é tudo. das viagens que faço de olhos fechados, do embalo das marés, da vulnerabilidade das aves, da orfandade dos anjos, coisas que invento, talvez seja disso que constantemente me lembro.
voltei a lembrar-me de mim, de me terem rasgado as entranhas, dos hinos de espanto e louvor que vieram dar ao meu colo, de as cicatrizes, umas por cima das outras, serem a prova inquívoca de que as dores saram.
voltei a lembrar-me de todas as mães que já tive. das mães todas que tenho.
heranças, memórias, paisagens, pinhais e tenho uma mãe que plantou um no campo, manso como convém a quem procura um abrigo debaixo da copa das árvores, mais uma mãe de papel expiando o contágio da carne, nunca sei se é na ficção que imito a realidade ou se é com a vida que atiro para cima das minhas mães de papel, para que me aliviem da carga.
não sei, mas voltei a lembrar-me.
naquele dia, voltei a lembrar-me e hoje, mais uma vez, a chuva promete voltar e molhar tudo em volta: a relva, as memórias, as pálpebras. há uma série de coisas que me atravessam a alma quando verto palavras, quando quero converter o que sinto na escrita, há sempre uma parte que falta, um lugar indizível ao qual as palavras não têm acesso, um intervalo entre a voz e o peito. averiguar a verdade é inútil, portanto. é inútil esquecer-me de tudo e foi disso mesmo que hoje voltei a lembrar-me.