segunda-feira, 22 de agosto de 2011

'abri a arca sem saber'

leu, nessa altura, míope com o tamanhinho das letras, as pupilas dilatadas pela grandeza do talento. e então soube que não ia mais voltar aqui e que assim como guardou, durante anos e anos, 'viagens, homens, retrocessos', assim irá ficar guardado aquilo que não é mais secreto. já todos sabem, repeti-lo é cansativo. ser a pessoa singular da sua história é cansativo. tanto faz se usa o tempo no presente ou se o conjuga no passado, não há futuro mais que perfeito a não ser que não exista e então é isso mesmo: 
a descoberta.
a despedida. 
diz-se adeus e não tem pena. o que está naquele baú é igual ao que flutua por aqui, virtualmente. e alguém abre sem saber, abre sem crer, e lê aquilo que quiser ler. 'viagens, homens, retrocessos.' não tem mais nada para dizer sobre si própria e a partir daqui é livre para escrever sem o 'eu' que, tantas vezes, a atrapalha. 
a gosto, acabam-se os porquês. a humanidade quer é espanto e não respostas. e em setembro - a haver setembro - comemora aquilo que já sabe que gosta, aquilo que gosta de fazer, e agradece.
a ela, 'as coisas em que se pensa sempre' e os 'livros interditos'.
a ele, o perdão que lhe pediu sem arrogância e as férias grandes.

and this is...


domingo, 21 de agosto de 2011

passo a passo

eis que se acerta o movimento de tentar mais uma vez entrar cá dentro e mudar de sítio as coisas que aqui estão há tanto tempo. a infância cristaliza a tal ponto as emoções que ao lá voltarmos, já crescidos, e como quem vai de visita, não queremos reconhecer-nos, muito menos abraçar-nos, não vá tudo o que deixámos lá para trás trazer de volta o que sentimos nessa altura, na maior parte das vezes sem que houvesse explicações. 

eu, por exemplo, sempre que volto aos pinhais e que me sinto cansada, opto por sentar-me um pouco e nem me passa pela cabeça ir pedir colo ao meu pai. pedi tanto, e tantas vezes, e de todas ouvi tanto 'tem perninhas é para andar', que me fui fazendo à estrada com a imagem do meu pai sem colo para mim. e nem o facto de hoje saber que isso é mentira - tenho uma lista que o prova, feita há menos de uma hora - me liberta, por enquanto, do desejo inconsciente da menina pequenina, que gosta de pedir colo aos homens da sua vida.

voltamos sempre à mesma história, a mais antiga deste mundo, por que razão haveria a minha infância de ser a excepção à regra? voltamos ao que sentimos, na maior parte das vezes sem que houvesse explicações, emoções que ninguém nos ajudava a desmontar e que no meu caso diziam: quando o meu pai me dá colo é porque gosta de mim, quando não dá é porque afinal não gosta. 

hoje, já sou capaz de desmontar que, quando o meu pai me dizia 'tem perninhas é para andar' estava provavelmente a dar-me, da melhor forma que sabia, ferramentas para eu tomar as rédeas da minha vida, mas a pobre coitadinha, pequenina e tão cansada, imaginava e construía um pai ingrato, que nunca lhe dava o colo que ela achava que merecia. e então tornou-se forte à força, para provar a esse pai que vai andar até cair, mas com a coitadinha à perna, pois está claro, a envenenar-lhe os passos, de cada vez que lhe dizia, e tantas vezes ainda diz
imagina, tão cansada e ninguém te pega ao colo, mas que injustiça!

depois de chorar as feridas, só dá vontade de rir! mas, para isso, há que ir revisitá-las quando ardiam e sangravam. entrar cá dentro e mudar de sítio as coisas que aqui estão há tanto tempo. há tanto tempo que aqui tenho um pai ingrato, tantos anos de cansaço a esforçar as minhas pernas, tanto colo para me oferecer - e ainda a sobrar para mais - e mesmo forte!, quando a pouco e pouco abraço as minhas fragilidades.

sábado, 20 de agosto de 2011

quando as mães boas fazem coisas... boas

o que já me atazanei de culpas e remorsos por ser uma má mãe dava mais prosa do que toda a que aqui escrevi ultimamente! há dezassete anos e uns meses - idade da minha filha mais velha - que esmiuço as falhas e os pecados da minha maternidade. ora é porque não lhes ligo o que devia, ora porque me excedo e lhes dou umas palmadas, ora porque faço deles uns mariquinhas-pé-de-salsa, quando lhes apaparico mil caprichos e cedo às suas vontades, ou porque digo coisas que não lembram ao diabo e os insulto... e então acaba tudo por ir dar à sensação de que cada um dos quatro só tem um quarto de mãe, do tanto que me divido a querer chegar sempre para tudo.

na mesma proporção ou mais, já que dura há quarenta e quatro anos, atazanei-me com queixinhas e queixumes e com traumas e angústias e um dedo apontado à minha mãe: 'a culpa é sua!'
e então ia escrever, como título deste texto, 'quando as mães boas fazem coisas más' - num plágio descarado do título do livro da Debbie Ford.

foi então que dei por mim a gozar de um sossego como nunca tive igual. há quase um mês que estou sem nenhum dos quatro em casa, há quase um mês que não os oiço a chamar 'mããããeeeee' e a parecer que me arrancam as goelas para responder no mesmo tom, há quase um mês que não me divido em quatro a tentar chegar a tudo, há quase um mês que não lhes ligo, não me excedo, não lhes bato, não lhes digo aquelas coisas que não lembram ao diabo e, em vez da mãe mariquinhas-pé-de-salsa que, para mostrar que é boa mãe, agora iria dizer
  há quase um mês que não os vejo!, ai, estou cheiinha de saudades
realizo como sou boa, mesmo boa, por me ter dado este espaço, por me der dado este tempo, por me ter dado esta paz, este descanso, este sossego.

como fui mesmo, mesmo boa mãe, quando pedi aos avós que tomassem conta deles para eu ir fazer a Escola. como fui mesmo, mesmo boa mãe, quando confiei que a Francisca ia gostar de ter a casa de Lisboa só para ela e a deixei responsável por si própria. como fui mesmo, mesmo boa mãe, quando organizei as coisas para o Lucas ir passar quinze dias à Comporta com o padrinho - que vê pouco, mas que adora - e como nem sequer lhe disse nada, quando chegou e, uma hora depois e em vez de cá ficar, como estava combinado, improvisou uma ida para casa de um amigo no Algarve. como fui mesmo, mesmo boa mãe, com as duas mais pequenas a passear por Inglaterra com o pai duas semanas e nem sequer lhes telefonei com as 'melguices' do costume - se estavam boas, se andavam a comer bem, a dormir bem, a gostar e por aí fora, nem sequer com a desculpa 'era só para ouvir a vossa voz'.

mesmo, mesmo boa mãe. quando a Francisca me ligou ainda há pouco a dizer que não sabe se tem dinheiro para voltar do Minho de camioneta e, caso não tenha, se eu posso ver se não dá para lhe comprar o bilhete pela net e já vou ver. mesmo, mesmo boa mãe, agora mesmo, vendo a mensagem do Lucas a dizer que já chegou a Lisboa e se não posso ir buscá-lo, porque está sem dinheiro para o autocarro e já hei-de ir, assim que acabar o texto. mesmo, mesmo boa mãe, quando ontem a Luísa e a Madalena me fizeram a supresa de aparecer aqui em casa, acabadas de chegar do aeroporto, e me vieram convidar para jantar com elas e com o pai - para casa de quem voltaram a seguir, porque o que está combinado é que, para aqui, só vão voltar na quarta-feira.

mesmo boa, a mãe inteira, em vez da esfrangalhada em quatro e tão má para ela própria.
 

Porto Santo, Agosto 2006






agora que até já sei umas coisas, anda cá que eu ensino-te

a tentação é enorme! enorme, e falo só por mim. quantas vezes, ultimamente, não dei já por mim a querer meter-me nos negócios dos outros, dando-lhes dicas para que desmontem a sua sombra? posso até justificar-me, arranjar mil desculpas do tipo 'não é normal que queira ajudar?', ou 'foi uma coisa importante para mim e só estou a querer que seja importante para os outros'.
e, então, se preciso de me justificar, é porque estou a contar uma história. e essa história é assim: 'eu sei o que é melhor para ti.'

afasto a tentação da boa aluna tão boa que até já quer ser professora e foco-me apenas em mim. e descubro que ninguém me ensinou coisa nenhuma, fui eu que aprendi - e que continuo a aprender, ao meu ritmo e à minha medida. 
e então foi assim: um dia, cheguei ao Emídio através do Henrique. simplesmente, porque ele partilhou um texto da Sombra Humana no seu mural e eu li - mas ele nunca me disse 'olha, lê isto, porque é mesmo bom!' - embora o pudesse ter dito, mas esse negócio é dele :) ele próprio - calculo - tinha encontrado esse texto noutro mural e levou-o consigo. calculo que só porque sim. e não porque alguém lhe tivesse dito 'olha, lê isto, porque é mesmo bom!' - mas nem isso sei...

sei, isso sim, que aquele texto bateu-me! 'apanhei-o', sem que ninguém mo tivesse impingido, e foi a ponta de um fio de uma meada que não mais larguei. alguém me ensinou como se desenrolava a meada? não, fui eu que aprendi. ou que fui aprendendo, que vou aprendendo, porque é uma meada para o resto da vida - que privilégio :)
desse texto saltei para os outros, disponíveis no blog. lembro-me de ter ficado a lê-los pela noite dentro e, na manhã seguinte, mandei um e-mail ao Emídio. não o conhecia de parte nenhuma, ninguém me ensinou como podia entrar em contacto com ele, o e-mail estava ali, nos contactos, escrevi-lhe porque me apeteceu.

depois ficámos amigos no FB. ainda que só virtualmente, acompanhava-o. lia o que escrevia e havia dias, confesso, em que ele me irritava! aquele 'delicioso!' chegava a ser uma afronta, sobretudo nos dias em que eu me sentia frustrada, irritada, zangada. havia mesmo alguns dias em que pensava: 'mas como é que este gajo está sempre tão bem disposto?' havia outros em que nem sequer era 'gajo', era mesmo 'cabrão', e nesses dias eu estava mesmo, mesmo zangada... comigo.
mas, lá no fundo, era isso que eu queria aprender: a delícia de estar em paz com a vida, fossem quais fossem as circunstâncias, os desafios, as pessoas que se relacionavam comigo. mas nunca o Emídio veio até mim para me dizer: 'anda, anda que eu vou ensinar-te.' pelo contrário, sempre me disse 'a mim tanto me faz que venhas ou não.'
também nunca o 'impingi' a quem quer que seja, embora pusesse os seus textos no meu mural, acreditando que, assim como eu, quem quisesse ler mais, saber mais, aprender, iria atrás dele como eu tinha ido.

conheci-o algum tempo depois, numa conversa que lhe pedi para um livro que estava a escrever. hoje, dou-me conta de que talvez tenha usado esse artíficio para o conhecer, a cores e ao vivo, antes de me meter a fazer mais coisas com ele, mas não tenho a certeza. 
não sei quantos meses já se tinham passado - de muitas leituras, escritas, perguntas, voltas e reviravoltas, desabafos como os que já revelei - quando enfim fiz o primeiro workshop com ele. uma tarde que me soube a pouco - mas onde ouvi falar do livro da Debbie Ford. mais uma vez, ninguém me ensinou que devia ir comprá-lo, nem me foi impingido. fui porque sim. fui porque quis. e aprendi mais qualquer coisa, enquanto o lia. depois disso, fiz um workshop de um fim de semana. e, a seguir, a semana na Escola

note-se que nada disto é publicidade ao Emídio, porque ele não precisa de publicidade para nada. é apenas mais um exercício - comigo e para mim. se hoje já me desmonto com algum à vontade, se já sei ver que é sempre de mim que se trata, se pego na coitadinha de mim e a abraço e lhe digo 'olha lá, minha parva, que tal fazeres uma lista do que esse queixume ou essa mágoa significam para ti?', se até já sou capaz de dizer 'que delícia' quando me furam um pneu do carro e sentir que a paz me atravessa... é só graças a mim. fui eu quem se disponibilizou para aprender. e, não, não tenho nada para ensinar a ninguém e até os textos que escrevo são, antes de mais, pelo gosto que tenho em escrevê-los. 
quanto ao resto, vou estar mais atenta, porque a tentação de me armar em boa aluna tão boa que até já quer ser professora é enorme!
e se por acaso alguém me vier perguntar o que é isso da sombra e estiver interessado em descobrir-se... não chega falar-lhes de mim e do que tenho aprendido. se é assim tão delicioso e tão fácil como aquilo que apregoo, há que dar o exemplo e continuar a aprender. todos os dias um pouco.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

era uma vez uma coitadinha muito infeliz e assim

há dias em que a coitadinha assume o protagonismo e pede-me espaço para carpir as mágoas. ombros caídos, olhar cabisbaixo, um aperto no peito como se o mundo estivesse a esmagá-lo, e uma data de maus à espreita na esquina, prontinhos para lhe darem cabo do pêlo e lhe infernizarem a vida. é claro que a mais má de todas sou eu, sempre que a deixo acreditar que é uma vítima. aliás, não só deixo, como confirmo
pois é, coitadinha de ti
e ponho-lhe ainda mais peso nos ombros caídos, olho-a ainda mais cabisbaixa e cheiinha de pena
ai, ai coitadinha
esmago-lhe o peito até que sufoque de mágoa, acrescento uns gemidos ao pranto
ai ai ai
e alivio-lhe a responsabilidade de tomar conta de si, ao mesmo tempo que afago o pêlo de que todos os maus lhe querem dar cabo, quando lhe digo ao ouvido
nesse estado, coitada, ninguém é capaz de tomar conta de nada
alivio-me da incompetência de também não saber tomar conta de nada e lá ficamos as duas 
coitadas!
ombros caídos, olhar cabisbaixo, o peito apertado pelas conspirações dos maus e do mundo em geral.
ai tantas mágoas
diz ela.
ai tantas dores
gemo eu. 
depois aquilo passa, quando enfim sou capaz de a mandar dar uma volta, quando a afasto de mim como se fosse uma estranha doente que só me atrapalha, uma infeliz de uma egoísta de merda a querer contaminar-me com os seus ais.
até hoje, não resultou e há sempre um dia em que ela volta
ai, coitadinha
ombros caídos, olhar cabisbaixo, um aperto no peito como se o mundo estivesse a esmagá-lo, e uma data de maus à espreita na esquina, prontinhos para lhe darem cabo do pêlo e lhe infernizarem a vida. talvez por isso, ultimamente tenho tentado outra técnica. assim que pressinto que os ombros se encolhem e que os olhos procuram o chão, tomo-a no colo e embalo-a, apenas o tempo suficiente para que não adormeça e acorde. 
olha lá, minha parva
e digo parva com condescendência, às vezes até com carinho, e prossigo sem fazer caso dos olhos a ficarem húmidos
olha lá, minha parva, és capaz de me fazer uma lista das mágoas por escrito, em vez de começares a carpi-las só porque hoje acordaste virada para aí?
e ela começa
ninguém gosta de mim...
abraço-a e faço-lhe festas
isso é mentira, eu gosto de ti
o mundo é perigoso
e aponto-lhe a paz do meu colo
os outros são maus
e mostro-lhe como os maus são bons a ponto de lhe mostrarem onde é má para si própria e ela funga, a pedir compaixão, eu percebo, sai-lhe um suspiro muito grande, cai-lhe uma lágrima, sabe que se suspirar e se fungar e se chorar e se insistir, eu acabarei por ceder, não tarda e estarei a dizer-lhe outra vez
ai coitadinha
e então desenrola outra lista, a lista do 'devia ser'
eu devia ser mais capaz, mais feliz, mais inteligente, mais gira, mais competente, mais corajosa, mais forte, mais limpa...
desato-me a rir. e mostro-lhe, como a uma criança pequena qua parece ainda não ter consciência dos paradoxos do mundo, onde sou tão capaz de lhe dar colo e de a abraçar com verdadeira ternura e sem a julgar. onde sou tão feliz por a ter sempre por perto. onde sou inteligente a ponto de ter percebido, com mais lucidez nestes últimos tempos, que era urgente mudar de técnica. onde sou gira - gosto dos olhos, da boca, do riso, do rabo, dos braços, do ar de miúda. onde sou competente e tenho a coragem de nos trabalhar, a mim e a ela, para que cada vez possamos sentir-nos menos distantes uma da outra, para sermos só uma e completa. mostro-lhe onde sou forte e levanto-me, ainda com ela ao colo, sustenho o seu peso nos braços, e limpo-lhe as lágrimas.
quando vieres outra vez com a história da coitadinha para cima de mim
digo-lhe, a rir,
é provável que ainda acredite que tens alguma razão.
e ela ri-se também, possivelmente porque sentiu que, afinal, continua a ter chances de me enrolar
mas já nem sequer é ao meu colo que a tenho, mas aqui dentro, aqui dentro do peito que não está esmagado por mundo nenhum que me seja exterior, e é lá para dentro que falo, quando lhe digo, quando me digo,
a história do era uma vez uma coitadinha muito infeliz e assim é mesmo só isso: uma história. provavelmente, a mais velha história do mundo.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

onde é que (ainda) me esvazio?

saí de manhã para ir ao aki comprar tinta. estacionei quase à porta e entrei. provavelmente com mais olhos que barriga, resolvi trazer um balde de 20 litros. pesava. imenso!
arrastei-o mais ou menos até à caixa, ao mesmo tempo que puxava um carrinho com meia dúzia de outras coisas. na caixa, avisei a senhora que não conseguia pôr o balde lá em cima e ela disse
não faz mal
e passou aquela coisa que lê o código de barras com o balde da tinta no chão.
paguei e percebi que não ia conseguir levar o balde e o saco, com a meia dúzia de outras coisas lá dentro, ao mesmo tempo para o carro. a senhora, então, perguntou a um colega simpático, ali mesmo ao lado, se não me queria ajudar. era mesmo simpático, o colega, porque disse logo que sim e agarrou-me no balde e lá fomos os dois, ele com o balde e eu com o saco e o carro ali quase à porta, que sorte, apontei-o
é aquele ali, está a ver?
ainda não estávamos lá e já o colega simpático me apontava um dos pneus 
olhe, tem um furo!
confirmei. um dos pneus de trás estava completamente vazio e faltava-lhe o pipo. tinha-me demorado quinze minutos nas compras, era completamente impossível aquilo ser um furo e pensei
houve um cabrão filho da puta que me esvaziou o pneu, olha que engraçadinho!
mas como até ando mais acordada do que era costume, parei o insulto e pensei
ok. houve um querido a querer mostrar-te onde é que te esvazias. 
entretanto, o colega simpático provou-me que também era prestável e foi lá para dentro, a ver se me arranjava uma bomba, apesar de estar convencido que aquilo era um furo, simplesmente, e não uma maldade. voltou pouco depois com outro colega prestável, simpático, e com a tal bomba. provou-se que era mesmo um delito quando o colega, o segundo, reparou que alguém tinha usado uma chave para desenroscar a válvula, o que fazia com que o ar que entrava saísse logo a seguir.
traz-me uma chavinha de fendas
pediu o segundo colega ao primeiro. e lá foi o primeiro e trouxe a chavinha de fendas com que o segundo tentou atarrachar a válvula, mas não conseguiu.
isto fizeram-lhe aqui um bonito serviço
disse já não me lembro qual dos colegas. e eu já com uma lista bem grande do bonito serviço na minha cabeça.
- esvazio-me quando não dou valor ao que faço.
- esvazio-me quando me sinto uma merda.
- esvazio-me quando não acredito que estou sempre cheia.
- tiro-me o ar quando fumo cigarro atrás de cigarro...
a senhora vai fazer o seguinte
interrompeu-me então o segundo colega
eu vou encher-lhe isto o máximo que conseguir e pôr o pipo ali do outro pneu e a senhora vai daqui directa à norauto e pede para eles lhe apertarem isto com uma chavinha que eles têm e que é mesmo própria para isto. 
e depois, virando-se para o primeiro colega, pediu
e agora dás tu à bomba, que eu tenho serviço à espera.
e ali ficámos, eu e o primeiro colega, eu em silêncio e ele dando à bomba e desfiando o seu rol de críticas.
não há direito, isto está mesmo mal, esta gente não tem o que fazer, qualquer dia estamos piores do que o Brasil, anda para aí uma malta, ai anda, anda, isto é que é uma vida... mas o que é que lhes passou para cabeça para lhe virem aqui esvaziar um pneu? qual era a ideia?
sorri e perguntei-lhe
está-lhe a saber bem ser-me útil? está a gostar de poder ajudar-me?
respondeu-me que sim - era mesmo simpático.
então talvez fosse essa a ideia. fazerem-me uma maldade para o senhor me poder fazer uma bondade
e escusei-me a explicar-lhe que, para além disso, eu já tinha uma lista de 'esvaziamentos'.
o colega sorriu-me de volta
pois, só se foi isso.
disse-lhe adeus, agradeci-lhe e segui para a norauto, ali mesmo ao lado. outro senhor muito simpático usou logo a tal chavinha de que o segundo colega me tinha falado, atarrachou-me a válvula num instantinho e sugeriu-me que fosse ali à bomba do Jumbo, encher mais o pneu e ver a pressão. agradeci-lhe e já estava dentro do carro, quando de novo saí para lhe perguntar se sabia onde podia encontrar um pipo para a válvula daquele pneu. prestável, simpático, o senhor da norauto enfiou a mão numa lata e estendeu-me uma mão cheia de pipos.
e foi aí que tudo bateu!... há doze anos, 'roubaram-me' o Pyppo - para quem ainda não sabe, o Pyppo era o pai dos meus filhos mais velhos, atropelado à minha frente por um camião destravado. esvaziei-me com essa morte até às entranhas. é muito possível que ainda hoje me esvazie, que ainda acredite que a sua morte me deixou um vazio. e então ali estava o senhor da norauto com uma mão cheia de pipos estendida para mim. 

é como diz o 'outro', não é?... d e l i c i o s o ! !

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

sabes quem é a pessoa que gosta mais de ti no mundo inteiro?

perguntei ontem ao K.
a mãe!
respondeu ele, sem uma única hesitação. 
ri-me e abanei a cabeça,
errado!
o pai?
perguntou-me ele, e de novo abanei a cabeça
errado...
esgotadas as duas possibilidades mais fortes, o K. ficou em silêncio, provavelmente pensando quem, para além do pai e da mãe, poderia gostar assim tanto dele. esperei que descobrisse a resposta, sem dizer nada, ao mesmo tempo que o imaginava a esgotar todas as outras possibilidades dentro da sua cabeça. ao fim de algum tempo, um pouco inseguro, o K. perguntou-me
sou eu?
já tinha feito este exercício com as minhas filhas mais novas e as duas me tinham dado as mesmas respostas
o pai e a mãe.
há uns tempos atrás, talvez lhes tivesse dito que estavam certíssimas - e a seguir enchia-as de beijos, para que não pudesse restar uma única dúvida. aliás, se quiser ser verdadeira, perco a conta às vezes que já disse a cada um dos meus quatro filhos, 
és a pessoa de quem gosto mais no mundo inteiro!
e só isso é a prova de que lhes estava a mentir, a não ser que quatro pessoas diferentes possam ser a mesma pessoa de quem gosto mais no mundo inteiro.
se, por outro lado, disser à minha mãe que descobri que as pessoas de quem gosto mais no mundo inteiro, afinal, não são os meus filhos, tenho a certeza de que me irá criticar
és uma ingrata!
e desenrolar um breve discurso sobre a qualidade das mães que se dedicam aos filhos, que vivem por eles e para eles e, na maioria das vezes, com sacrifícios, e as outras, assim mais tipo eu, que vendo bem até sempre fui um bocado desaparafusada e que com o tempo me tenho vindo a tornar numa grande egoísta. e depois os meus filhos
coitados!
diz ela, e suspira
andam aí ao deus dará!
pois eu gostava que a minha mãe, quando eu era pequena, me tivesse explicado que a pessoa que mais gostava de mim no mundo inteiro só podia ser eu. por mais que também ela gostasse, claro!, e o meu pai, e a minha avó, e o meu avô, e as minhas tias e por aí fora. mas nunca é assim e não posso dizer que a minha infância tenha sido a excepção. e então é assim que todos crescemos, com esta crença danada que nos jura a pés juntos que, para estarmos vivos e de saúde, não nos pode faltar o amor dos outros. e se houver alguém que nos queira amar mais do que si próprio, está montado o cenário de dependência para todos os filmes futuros.
habituados a ter alguém que goste, acima de tudo, de nós, vamos esforçar-nos o mais possível por lhe agradar e fazer o que seja preciso para lhe chamar a atenção. o objectivo é que goste de nós, que nos valide, nos apaparique e nos faça sentir importantes, nem que para isso passemos a vida inteira a fingir não ser o que somos: perfeitamente imperfeitos.

e lembro-me daquele anúncio, não sei se de um leite ou de um iogurte, em que uma loira meia despida - estão sempre meias despidas, as loiras que fazem anúncios - olhava para a câmara e perguntava
se eu não gostar de mim, quem gostará?
e é isso então que quero mostrar aos meus filhos: o egoísmo de amar-me mais a mim do que a eles, de ser a pessoa que mais gosta de mim no mundo inteiro. e desejo do fundo da alma que sejam tão egoístas, tão egoístas que sintam o mesmo em relação a eles próprios.


terça-feira, 16 de agosto de 2011

a velha gorda

faz-me ver onde sou gorda e faz-me ver onde sou velha. sou velha quando me agarro aos padrões do passado, quando repito, repito, repito e me engasgo, quando não me abro ao que é novo, quando me aforro às poupanças e me contenho nos gastos, quando me enrugo, desgasto e me desato em moralidades, quando digo 'ah, no meu tempo não era assim' ou 'já ninguém tem mais respeito por nada', quando me pesam os anos e então também é aí que sou gorda. no peso excessivo que ainda dou à opinião de terceiros, nos pensamentos a escorrer celulite, na gula mental com que me enfarto a dizer mal dos outros, na obesidade das opiniões.

a invejosa de merda que tem a mania que é boa mostra-me o que quero ter e não tenho, a merda que faço, a mania de que sou melhor do que os outros. quero ter e não tenho sossego, invejo o alheio quando não sei valorizar o que sou, quando afinal me sinto pior do que os outros e a mania é só mais uma máscara, mais uma capa de merda para tentar provar que sou boa. sou boa, mas não tão boa, é precisamente aqui que sou má, que sou uma merda, quando me abandono e deixo a tarefa de ser amada para os outros, não admira depois que os inveje, quando me amam mais do que eu própria, as manias são sempre uma prova de como nos agarramos a pensamentos que não são nossos. e volto a ser gorda de cada vez que me empanturro até à náusea com eles.

a mulherzinha que não tem onde cair morta revela-me a mesquinhez das inhas todas que sou, diminutiva em tantos aspectos, mazinha, intriguistazinha, picuinhas, parvinha. caio morta de todas as vezes que a vida me acolhe e a recuso, mortifico-me com dores invisíveis, morro até quando respiro e tomo a benção por esforço, ponho-me a arfar como se o ar não fosse de borla, entupo de fumo os pulmões, mato-me à espera que me ressuscitem, mas nunca resulta.

o cabrão do filho da puta que nos anda a roubar nos impostos é seguramente o mesmo cabrão filho da puta que rouba a verdade, sempre que conta uma história pela metade que mais lhe convém, somos sempre nós próprios, gamando aqui e ali tudo o que não nos pertence, tomando posse dos outros, fazendo da propriedade um direito. roubamo-nos sempre que não mostramos tudo o que somos, subtraímos defeitos para que os outros nos considerem pessoas boas e são tantas as condições que lhes impomos! 'tens de ser isto e aquilo', 'não sejas assim', 'se ao menos fosses mais compreensivo', 'já te disse para não seres tão bruto comigo'. cobramos. 'se não fizeres o que te peço já não gosto de ti'. impostores! todos nós. quando desabafamos em público contra o sistema, e depois o cumprimos, em silenciosa obediência, e nos roubamos a liberdade de agir como seria mais justo.

a boa rapariga. tira a máscara da linda e põe a da amorosa. tira a da amorosa e põe a da linda. tira a da linda e põe a da bem comportada. tira a da bem comportada e põe a da lúcida. tira a da lúcida e põe a da boa aluna. tira a da boa aluna e descobre que se sufoca com elas, com tantas camadas de máscaras, de capas, que maquilha os comportamentos, põe batôn nas palavras, blush nas poses, cora a palidez com uma base compacta para que não se notem as imperfeições e até nisso é fingida, na dissimulação das cicatrizes na cara, não se importa assim tanto que lhe descubram as crostas, mas nem sempre se atreve a arrancá-las para que purguem de vez velhas feridas. 

sombra. como se fosse um refúgio fresco e seguro debaixo da copa das árvores.
não é. 
torra-nos mais do que o sol, queima-nos mais do que a luz e faz-nos arder lentamente na sua penumbra de amor por quem somos.
é bom.

ah!

não era um suspiro, embora parecesse.
tanta coisa que parece e não é
disse alguém.
e viraram-se todos para ver quem era, mas afinal não era ninguém, porque andam sem dono os ahs deste mundo, parecem suspiros e nem sempre o são, talvez sejam apenas maneiras de expelirmos o ar fazendo barulho, pode até ser um ah! de satisfação, pode ser ah! de espanto, pode ser uma simples vogal seguida da consoante do homem e de um ponto de exclamação. ah!, então está bem e nesse caso é um ah de concórdia, mesmo que em desacordo com a harmonia das coisas, pode ser um pretexto para dar rumo à prosa, pode ser um ralhete da mãe, um ah com que então!, pode ser o prazer do orgasmo e nesse caso prolonga-se pelo corpo adentro
aaaaahhhh...
ah. troca-se a ordem, põe-se um acento e então há. há tantas coisas em que já não acredito, há tanto tempo que já não te vejo, há sempre diferentes pontos de vista para tudo, não há nada que se possa dizer
isto é verdade, acredita.
ah ah ah e são gargalhadas. borboletas à solta. estridências felizes. ou apenas o eco que devolve os suspiros a quem está perdido numa montanha. ah pois há, tanta gente perdida, tanto eco chamando a nossa atenção para o que não queremos ouvir, montanhas de coisas que não queremos ver como são, planícies de paz ao alcance de todos, ah!, que maravilha, ah!, que lindo, ah! que desperdício, gastarmo-nos tanto em suspiros, em lamentações, em caprichos, tantos ahs com que expelimos a dor, tantos sopros à solta no mundo, há quem diga que são os sopros dos anjos e quem não acredite que um simples par de asas chegue para tanto. ah, tanto me faz, dizem os cépticos, eles que voem para aí. ah ah ah. o riso de novo, a provocação, o alento, a onomatopeia afigurando-se um termo, pôr termo à vida com um ah de abandono, saudá-la com um ah e um ar de surpresa, tantos ahs à solta no mundo, as mesmas letras para sentimentos distintos, ah de tristeza, ah de certeza, há mesmo muitas cadências, compassos de espera, entoações
ah!...
diz alguém
então está tudo bem.
e está mesmo.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

a polpa dos dedos ardia-lhe

não de escrever, mas de intuir que das mãos saem gestos que não controlamos. e, no entanto, achamos que sim. que controlamos os dedos, as mãos, as pernas, o corpo e que o que acontece obedece à razão. duas horas de sono, cinco horas de insónia, a polpa dos dedos peganhenta dos figos que lhe mataram a fome ainda há pouco, a roseira enfim descansando da aurora dos pássaros, não tarda o relento virá pousar sobre a relva, as buganvílias recolhem-se, a lua mingua no céu e dentro dela cresce a certeza de que não controla coisa nenhuma, afinal. tem as pálpebras secas, mesmo que os olhos lhe brilhem onde o sal se condensa, de novo vêm à tona as pedras, os lagos, as estrelas que os sonhos dos homens querem pôr a secar longe do mar, os caranguejos, os polvos, as conchas que pôs num frasco de vidro e que beijam os búzios quando se sentem em paz.
arde-lhe um fogo manso no peito, uma cor de poente, um lastro de sangue e nem sequer sabe dizer como é que as polpas dos dedos alcançam as teclas e escreve o que escreve. não sabe. mas sabe, isso sabe, que o sol amanhã vai nascer sem precisar que lhe peça, sabe que o mundo gira e avança como uma nave redonda envolvida por espaço, que o tempo se inventa como desculpa para já ser tão tarde ou ainda ser cedo e nunca é tarde nem cedo, mas a hora certa para tudo, a cada momento. sabe, isso sabe, que a relva lhe deixa marcas frescas nos pés quando a pisa, sobretudo depois de regada, sabe que a sede se mata se nunca esperar que lhe ofereçam água e a for colher directamente dos poços. sim, abrem-se poços de cada vez que mergulha nos lagos, os mesmos das estrelas, dos caranguejos, dos polvos, abre-se um sulco nas ondas quando se põe a escrever sobre o mar, não pode sequer dizer que navega, mas que é navegada, que há algo mais forte que a leva através das correntes da água, que agosto é o mês em que as férias lhe parecem maiores porque, em pequena, tudo era tão grande.
arde-lhe o brilho dos fósforos quando acende um cigarro e o segura nos dedos ao mesmo tempo que escreve. o vento lá fora passa a lembrá-la do espanto que é ver as folhas moverem-se sem pensarem sequer por que é que se movem, a vida só passa a correr quando não damos por ela, quando fora de nós nos demoramos nos outros, quando ansiamos por voltar a casa e nem reparamos que temos a chave da porta no bolso. a vida acontece sem nos pedir nada em troca, a não ser para a vivermos como ela nos mostra: perfeita e constante no seu movimento de se bastar a si mesma e é só. e é tanto!
e é tudo: por hoje.


'és a mulher da minha vida'

diziam-lhe eles.
primeiro um, depois o outro, e ela crendo que chegava e que sobrava, ser a mulher da vida de outro, a eleita para ser a mais amada, desejada, idolatrada, testemunhando de que forma, primeiro um, depois o outro, lhe acudiam aos caprichos e, com a paciência dos santos, lhe aturavam as manias, desculpando-lhe as ausências, perdoando e relevando a balança que oscilava no seu peito e que ora a fazia querê-los, ora queria abandoná-los, porque não se amava a amá-los. 

foram anos neste jogo. aceitou-os, primeiro um, depois o outro, por achar que a primazia era uma benção, acreditando que merecia as atenções que lhe votavam, mesmo que não compreendesse de onde lhes vinha aquela ideia de a amarem quase mais do que a si mesmos, nem a pieguice tonta de lhe dizerem, uma e outra e outra vez, que sem ela a vida não teria a mesma graça.

educada a ouvir histórias de fadas, e a criar, ela própria, os seus enredos maravilha, acreditava que somente um grande amor ia salvá-la das agruras e das ânsias de uma mortal existência. esse grande amor da vida, que via chegar nos filmes montado num cavalo branco, principesco, encantador, o mais perfeito dos seres onde veria, finalmente reflectida, a sua própria perfeição, iria chegar um dia para a tornar, mais uma vez, na mulher da vida dele. e nem sequer a evidência de que a mulher da sua vida tinha de ser ela própria a demoveu de procurar o amor fora.

e foi assim que chegou à sua vida aquele que mais lhe pareceu um princípe, mesmo sem o cavalo branco e o manto da realeza, lá embicou que devia ser aquele, nem ela sabe bem porquê. mas remexia-lhe as entranhas e afogava-a num sufoco que nunca tinha sentido e, sobretudo, teve a decência de não lhe dizer nenhuma vez
és a mulher da minha vida.
talvez por isso, desatou a amá-lo tanto que, de novo, se esqueceu que a mulher da sua vida tinha de ser ela própria e caíu no mesmo logro em que, primeiro um, depois o outro, já tinham caído em tempos e fez dele o homem da vida dela. acudia-lhe aos caprichos e, com a paciência das santas, aturava-lhe as manias, desculpava-lhe as ausências, perdoava e relevava a inconstância no seu peito, mesmo que, secretamente, ansiasse pelo próximo, pois nunca estava contente: desta vez, pela injustiça de não ser a mulher da vida dele, e usando essa desculpa para fugir de vez em quando. 

qual não foi, então, o espanto, quando o próximo chegou num dia em que se olhava ao espelho. tão igual a ela própria que quase o mandou embora, afinal não tão perfeito como sempre imaginara, não era homem sequer e muito menos principesco. mas trazia-lhe de dentro aquilo que há anos procurava fora dela e, por isso, não quis crer, já que isso invalidava a história maravilhosa, onde um ele e uma ela se uniam para compor a felicidade, como se de duas metades se tratasse. 

e, no entanto, em frente ao espelho, e a haver metade, era uma metade dela e nenhum ele, nem inteiro nem pela metade, para ceder aos seus encantos, nenhum ele para a tratar com primazia, nenhum ele para fazer papel do princípe, nenhuma pieguice tonta, mais ninguém para além dela a pedir-lhe um longo abraço e não foi logo que acedeu estender-lhe os braços. resistiu sempre que pôde e ainda evita esse contacto, quando as histórias são mais fortes que a presença, quando o mito cor-de-rosa é mais forte que o amor. ele + ela = felizes para sempre.

provavelmente, ainda não é a mulher da sua vida e, no entanto, foi o amor que sentiu maior que tudo ao amar outro que fez com que empreendesse o resgate de si mesma. se vai ou não vai ser salva, dependerá do quanto, ao espelho, for acedendo a abraçar-se por inteiro, cada vez com menos medo de afinal não ser perfeita.

the wall

disseste
há um muro intransponível e tu ficaste desse lado.
senti-o nas tuas mãos que me afastavam, um muro compacto, realmente intransponível, muito alto e, mesmo assim, ousei trepá-lo, desfazê-lo, derrubá-lo pela força, forçá-lo pela insistência. mas não cedeu um só milímetro, nem sequer quando troquei força por festas, era mesmo muito alto e muito denso e muito largo. e vim para casa e não dormi a noite inteira, com o peso desse muro entre nós dois. nenhuma frincha por onde fosse possível começar a esboroar-se, nenhuma fresta por onde o ar circulasse, ficámos a atirar palavras como quem atira pedras e lembrei-me dos murais do facebook e de como há tanto tempo mantemos esta intifada. palavras que atiramos pelo ar na ilusão de que estamos a atingir o outro lado, mas que fazem ricochete e nos acertam nos lugares que menos queremos. nos lugares onde dói mais.
e então só fui dormir quando já havia luz e a manhã se espraiava sobre a relva e reparei que não havia muro nenhum, apenas pássaros acordados nas roseiras, os figos que caíam, maduros e peganhentos, sobre o pátio, as buganvílias enroscadas na parede lá do fundo, e as coelhas, indiferentes à insónia que me calava as visões, de tanto me inchar as pálpebras com o sal dos pensamentos.
e fui devagar para a cama. subi as escadas e em nenhum dos dez degraus vi um muro intransponível e pude assim subi-las todas e deitar-me e imaginar que já era larga e branca, a cama nova que em breve irei comprar, e sonhei que voltavamos à praia onde caçadores furtivos roubam as estrelas dos sonhos para as secar longe do mar sem que eu possa fazer nada para os deter. sem que eu possa fazer nada para transpor a barricada atrás da qual tu te defendes. sem que eu possa fazer nada a não ser ver onde eu própria ergo os muros que me separam de mim mesma, trepar descalça até lá acima e ver que o céu, afinal, não tem paredes.



o mau da fita

há sempre um mau da fita nos filmes que inventamos. ao contrário do galã, que nos leva ao paraíso, o mau da fita é o que nos atira para o inferno e nos faz a vida negra. duro de roer, insensível, cheio de vícios, incarna sempre a nossa sombra. mas, até que o saibamos ver, e desmontar, ele servirá, na perfeição, como um bode expiatório. é dele a culpa de nos sentirmos mal amados, é dele a responsabilidade de chorarmos pelos cantos, é dele a incapacidade de não ver como é cruel, é dele a falha de não ser iluminado.

no último filme de amor, o mau da minha fita era promíscuo. o mau da minha fita era desequilibrado. o mau da minha fita era cruel. o mau da minha fita era o culpado por toda a minha tristeza. o mau da minha fita era um traidor. o mau da minha fita era mal agradecido. o mau da minha fita era 'doente' e eu... era a 'saudável'. a boazinha. a querida linda e esforçada por salvá-lo. a sempre boa rapariga, que jurava entregar a sua causa ao serviço do amor. que se queixava por dar tanto e receber, afinal, tão pouco em troca. a que dormia com a esperança de que um dia o mau da fita se tocasse e se transformasse em bom e que a acordasse com um beijo e a levasse ao paraíso.

espelho meu, espelho meu, quanto do que vejo em ti é meu?

demoramos a acordar. e, no entanto, aquilo que eu vejo em ti é o que eu tenho. a promiscuidade é minha e, neste caso, a sombra não está no sexo, está na língua, que se enfia nos ouvidos de terceiros a falar de intimidades, que nem sequer são só minhas. o desequilíbrio é meu, tão balalão, tão balalança, agora sim, agora não, assim não quero, assim está bem. a crueldade é simplesmente amar-me pouco, quando podia amar-me tanto e, a haver culpa, ela é provavelmente humana, essa culpa que nos torna, a todos nós, reféns do amor dos outros. a traição, afinal, não é mais do que trocar-me, deixando que o mau da fita ocupe todo um primeiro plano, enquanto eu fico - coitadinha! - a carpir nos bastidores. e, sim, sou muito mal agradecida de cada vez que não vejo que a descida a este abismo e o encontro com a sombra é uma benção, um sinal para que acorde! que padeço da mesmíssima 'doença' de todos os comuns mortais, crónica e cheia de recaídas, e que a cura é perdoar-me, senão de uma só vez, a pouco e pouco.

perdoar a má da fita, pelos seus filmes e dramas. 'quando não me amo, eu doo', diz o Emídio. e reparo que não me doo, não me doo no instante em que sou boa e pego na má ao colo - em vez de a querer castigar por ser tão irresponsável, tão promíscua, tão 'doente', ou em vez de a querer esconder num quarto escuro, cheia de medo de que possam descobri-la, acusá-la, condená-la. não me doo no instante em que me amo. não me doo quando perdoo.
e assim acaba o filme.
e fica só o amor.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

om, om, om


acreditei, durante anos, que um dia eu estaria 'lá'. e 'lá' era um lugar, ao mesmo tempo distante e luminoso, que os chamados 'evoluídos' alcançavam à custa de muitas meditações, abnegações, boas acções e a fé profunda de que somos, todos nós, luz e amor. 
a nova era incutiu-nos esta ideia estapafúrdia de que é possível transmutarmos a matéria mais imunda dos pecados dos mortais e que assim, e ainda em corpo, nos podemos elevar à divina transparência do nosso deus criador, imune a qualquer espécie de 'mal'. 
ah, doce promessa. ainda por cima, validada pelos mais sábios dos 'mestres', sustentada por milagres, por mensagens que provinham de esferas mais elevadas, canalizadas graças ao transe profundo de um punhado de eleitos. 
sim, um dia também eu estaria 'lá'. nesse lugar a que se chama de 'paraíso na terra' e se apresenta como um grande vale de paz onde, enfim, aquietaria as minhas ânsias, amaria tudo e todos, redimiria as minhas falhas e ficaria numa espécie de nirvana, a meditar, tranquilamente, e finalmente protegida dos malefícios das trevas.
om, om, om...
o engraçado é que, quanto mais acreditava que me estava a aproximar desse lugar, mais distante ele me parecia. e, então, empreendia novos esforços. meditava mais um pouco e parafraseava os mestres, lia mais dois ou três livros - ou mais cinco, dez ou quinze -, acendia muitas velas, castigava-me a mim própria por ser tão incompetente, na incondicional tarefa de amar tudo e toda a gente, acendia-me por fora para ver se, assim, as minhas entranhas escuras sucumbiam ao contágio das frases iluminadas que me enfeitavam a escrita, e estava disposta a tudo para alcançar esse vale de paz eterna onde a minha humanidade se iria render, enfim, à sua essência divina. 
deus segredava-me ao ouvido que eu estava no bom caminho, mas, a cada encruzilhada, esperava-me o diabo e... confundia-me. levou tempo a descobrir que a história que me contaram - que a história que me contei - não passa de uma mentira. o inferno e o paraíso não são dois lugares diferentes, separados pelas metáforas que criámos para 'mal' e para 'bem', o diabo é tão divino como deus é diabólico. 
mas vá-se lá entender isto quando para tentar explicá-lo recorremos às palavras. e, no entanto, a verdade é que, para mim, que as mastigo uma e outra e outra vez, as aniquilo, as substituo, as reinvento, as vomito para voltar a engoli-las e alterar-lhes o sabor, elas têm o condão de fazer com que um sim possa ser não e um não possa ser sim e não haver contradição, a não ser quando as obrigo a caminhar num só sentido.
e então há algum tempo que deixei de acreditar que um dia eu esteja 'lá'. afinal, 'lá' é 'aqui'. e 'aqui' é 'lá'. duas palavras, um só sítio. como a luz e a escuridão. como o amor e o ódio. como deus e o diabo. sempre uma só e a mesma coisa, provavelmente separadas pelo dia em que inventámos as palavras e desatámos a querer chamar nomes às coisas.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

agosto de ti

pequenos lagos, todos eles contendo o mar, incluindo o dos teus olhos, a maré descendo mansa e revelando uma cidade construída com a areia e com as pedras, as palavras que escorregam dos meus dedos quando quero falar das coisas e não sei usar palavras.
- sabem a sal, já reparaste?
a gosto.
férias grandes.
todas as vezes que chorei a contra gosto, grandes lagos de água doce, incluindo os dos meus olhos, as marcas da felicidade nos joelhos que esfolei a tentar trepar as lages onde ardia a minha infância, crostas de árvore, a resina dos pinheiros a sangrar rente aos poentes, o riso fértil das searas e o desgosto quando as histórias são contadas no pretérito imperfeito das crianças inocentes.
era uma vez uma menina.
era uma vez uma cidade.
era uma vez uma mentira.
era uma vez uma saudade.
coisas que nunca mais foram, e que hoje são uma outra coisa, mas que queremos agarrar e pôr a boiar nos lagos. pequenos lagos de água doce, incluindo o dos teus olhos, sempre que mergulho neles e que me sabem a sal, sempre que corro para o mar e me debruço a reflectir sobre o céu que espelha em mim. agosto e sinto o gosto das marés que me enchem, me esvaziam, o naufrágio nos teus braços, as minhas margens de corpo, todas as sombras que se abatem quando a noite nos permite entrever os nossos vultos, hemisférios que se encaixam na grande roda das estações e da verdade inexorável de que não há como fazer com que não gire.
agosto como a gosto te apresentei à minha relva e semeámos o que chamámos de bicho e como achei que me comia as entranhas e me deixava exactamente as mesmas marcas, as mesmas crostas dos pinheiros da minha infância
era uma vez uma menina.
era uma vez uma mentira.
o pretérito perfeito das coisas que nunca acabam: apenas dão lugar a outras, e sempre à laia de presente. a dádiva de nos usarmos para descobrir quem somos. pequenos lagos de água mansa, incluindo o dos meus olhos, quando te ofereço às profundezas do meu medo, quando enfim vem à tona a minha força e me descubro a ser o mar que os teus olhos me revelam.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

'se é assim tão fácil ser diferente, poderás dar o exemplo?'


'resta-nos esperar que o que é e não devia ser deixe de ser e passe a ser o que devia', escreveu a minha amiga S., a propósito de um 'caso chocante', de 'extrema violência psicológica', com uma criança de 11 anos.
e vi-me à espera. imaginei-me à espera. observei como, também eu e tantas vezes, já esperei e ainda espero que o que é e não devia ser passe a ser o que devia. e depois ri-me. de que forma aquilo que é devia ser uma outra coisa? quantas vezes resultou acreditar que aquilo que é não devia ser assim? as vezes todas que pensei que 'não devia haver guerra'. e as guerras continuam. as vezes todas que defendo que 'não devia haver fome'. e a fome continua. as vezes todas que a revolta me levou ao desespero: 'o Pippo não devia ter morrido'. e ele morto há doze anos. as vezes todas em que ralho com os meus filhos, 'não devias ser assim', e eles sempre sendo aquilo que são...

mas vamos ao 'caso chocante'. podem lê-lo aqui na íntegra. onde é que realmente ele é chocante? e onde é que andar a divulgá-lo faz de nós boas pessoas? onde é que nos indignamos? onde é que exercemos sobre nós essa 'extrema violência psicológica', sempre que acreditamos que aquilo que é devia ser de outra maneira? 
ah, dizem vocês, e então não se faz nada?... deixa-se assim um pai 'narcisista, obsessivo e complusivo' retirar um filho de 11 anos, 'brilhante aluno', a uma mãe 'premiada por solidariedade social a nível mundial'? e, no entanto, é bom saber que o autor desta denúncia assume não conhecer as pessoas de quem fala e que está só a exercer uma 'cidadania responsável'. 

é claro que ele não conhece as pessoas de quem fala. conhece simplesmente as histórias que se contam sobre as pessoas de quem fala. e a história que se conta é que o pai é narcisista, obsessivo e compulsivo. e que o filho é um 'brilhante' aluno. e que a mãe é 'premiada por solidariedade social'. 
e assim - suspiro de alívio - podemos reconhecer-nos, porque a história não difere assim tanto das que também nós contamos - sobre nós e sobre os outros. histórias onde há sempre um mau - o pai obsessivo e narcisista e compulsivo - histórias onde há sempre um bom - a mãe solidária e premiada - histórias onde há sempre um coitadinho - brilhante aluno, ainda por cima, o que com sorte irá fazer com que seja um pouco mais coitado ainda!

se formos boas pessoas - como queremos que acreditem que nós somos - vamos atacar o pai, vamos defender a mãe e vamos ter pena do filho. a 'cidadania responsável' fica assim bem exercida, sobretudo se, para além de atacar o pai e de defender a mãe e de ter pena do filho, formos capazes de vender esta versão ao maior número possível de pessoas. todas boas, pois está claro, e que também se indignarão e chamarão nomes ao pai - que não devia ser narcisista, obsessivo e compulsivo - que irão prestar a sua solidariedade à mãe - reconhecida e premiada a nível mundial! - e que irão ter tanta, tanta pena deste filho de 11 anos.


e acordar? não?
e exercer, cada um, uma individualidade responsável, não?
se um pai narcisista, obsessivo e compulsivo me atrapalha... será que sou, também eu, de alguma forma, narcisista, obsessiva e compulsiva? será que em cada de um vós não existe um narcisista, um obsessivo, um compulsivo? ah, dizem vocês - pessoas boas, responsáveis e decentes -  claro que não! 
eu não estaria tão segura. mas, isso sim, é tão chocante! descobrir onde somos narcisistas, complusivos e obsessivos. onde exercemos violência psicológica sobre os filhos. onde somos tudo aquilo que, de acordo com as crenças, 'não devia ser assim'.
será que não sabemos ser mais solidários com nós mesmos e darmo-nos o prémio de começarmos a acordar? onde é que o filho coitadinho são vocês? onde é que ainda se alimentam da mentira que o que é não devia ser assim? em que planeta? onde podemos ser brilhantes como alunos?

e volto à voz clara e doce do Emídio: 'se é assim tão fácil ser diferente, poderás dar o exemplo?'





segunda-feira, 8 de agosto de 2011

a verdade


- não tentes dobrar a colher. é impossível! em vez disso tenta apenas tomar consciência da verdade.
- que verdade?
- a colher não existe.
- a colher não existe?
- depois verás que não é a colher que se dobra: és tu.





tomar consciência da verdade é um exercício que exige coragem. e a verdade é que todos nós queremos dobrar a colher. mas essa é a verdade cobarde. a ilusão de que há colheres à mercê da nossa força e vontade, a tentação de nos vitimizarmos quando colheres, garfos, facas, pessoas resistem, impunes, àquilo a que tantas vezes chamamos um 'gesto de amor'. temos a crença de que sabemos o que é melhor para os outros. a crença de que sabemos o que é melhor para nós. que delícia a voz do Emídio a lembrar-me
a mente é louca!
a mente, qual colher orgulhosa de não ser maleável, mas inoxidável, em aço, nunca se dobra, mas enlouquece quando se esmifra e se esforça por dobrar os outros à sua verdade. a verdade cobarde, de pôr nos outros a responsabilidade de não serem flexíveis. de não se assumirem como os maus da fita, não se responsabilizarem pelas nossas dores, de nos terem criado um inferno, de serem, coitados, tão pouco evoluídos, tão desumanos, cruéis e assim.
nada de novo, portanto. apenas a velha história da humana idade que se repete, quando queremos tomar a parte pelo todo e falar da verdade como se fosse uma só e a mesma para todos. mas a verdade é que a verdade, quando vem ao de cima, quando é realmente verdade, tirou o foco das dobras dos outros e, em vez disso, dobrou-se sobre si própria. recolheu-se à sua evidência, contrariou a sua inflexibilidade, tomou consciência da responsabilidade de assumir a mentira e que a mentira é exigir uma só e mesma verdade que sirva para todos. 
acho-me graça quando ainda acredito que dobro colheres, garfos, facas, pessoas. acho-me graça quando, dobrada sobre mim própria, descubro tranquilamente a verdade: afinal, ainda acredito em mentiras. acho-me graça quando, inoxidável, quero puxar pelo brilho dos outros e lhes digo que ficarei muito contente se eles reconhecerem a luz que transportam. acho-me graça quando ainda acredito que a verdade é que somos todos luz e amor. porque quando realmente me dobro e vou ao encontro do escuro, quando embato no ódio, quando escarafuncho na sombra, descubro a verdade: sou feita de tudo um pouco e é nas dobras doridas do aço que reside o meu ouro.

domingo, 7 de agosto de 2011

a Escola

nenhuma teoria, nenhum livro, nenhuma frase, palestra ou explicação foram nunca tão eficazes a mostrar-me o caminho que nos conduz da mente ao coração como este movimento das mãos. ao observar o Emídio a fazer estrebuchar a mão direita que, como a mente - esquizofrénica por natureza - quer tudo menos aquietar-se e ficar sossegada e, logo a seguir, a trazer a esquerda à sua presença, descendo como uma benção capaz de acalmar tempestades, foi aquilo a que chamo de 'clic'. como se, de repente, tivesse ficado visível - e acessível - o mecanismo que, a cada momento, me pode acordar, me pode acalmar e fazer perceber como é ridículo insistir em sofrer, como é realmente esquizóide a mente que se compraz com as histórias que inventa e nos conta - a nosso respeito e a respeito dos outros.

realizei, talvez pela primeira vez, que esta mão, esta mente que constantemente se agita e estrebucha, não irá nunca abdicar do seu movimento esquizóide, não irá nunca parar de andar loucamente para trás e para a frente, aos solavancos para cima e para baixo, em busca de provas para o seu sofrimento. e que acreditar que um dia nos irá dar sossego é uma enorme ilusão!... e, no entanto, senti como se acalma - ou talvez como deixo de dar pela agitação de que padece por natureza - quando o coração, sem se impor, se manifesta a bater no presente. como o pulsar do agora, sem nunca querer ter outro ritmo para além do que tem neste exacto momento, revela a magia e o milagre da vida. 

sem esforço nenhum, reparei que respiro sem ter de saber ou de compreender quantos músculos ou órgãos estão envolvidos para que isso aconteça. senti como é possível ter paz, nem que seja por um brevíssimo instante, quando não dou ouvidos à mente que mente e que quer ter razão, quando não luto com ela, quando estrebucha e não lhe dou importância, quando permito que o coração desça como uma benção sobre a loucura das tempestades e pulse, benignamente tranquilo. 

e é isto que trago de uma semana na Escola. dias inteiros e intensos esgravatando memórias e remexendo nas sombras, ao mesmo tempo que o sol derretia os nossos corpos de dor, que iluminava o rio Tâmega e o recorte das serras em volta, sentindo como era inútil e estúpido pedir-lhe para nascer um pouco mais cedo ou para se pôr um pouco mais tarde, exigir-lhe que não estivesse tão quente. 
histórias e histórias e histórias contadas na popular e humana versão do 'coitadinho de mim', lágrimas e sofrimentos e abandonos e violações e desesperos comuns a nós todos. uma semana envolta nos dramas que, de repente, se tornam comédias, o paradoxo de sermos tantos num só, as crenças que defendemos com unhas e dentes e que num instante caem por terra, a resistência em abrir mão de nos identificarmos com as nossas máscaras, não vá dar-se o perigo de não sobrar nada, afinal, para contar sobre quem somos sem elas. 
uma semana na Escola a descobrir como é inocente o sentimento da culpa, como expor a vergonha de nos termos sentido nojentos torna o ar limpo, como foi que embarcámos em histórias para irmos naufragar no mar alto, como acreditámos que nos lançaram às feras e nos deixaram sozinhos, como foi que nos convencemos que o pai e a mãe e a avó e o tio e o mundo em geral não gostavam de nós nem nos amaram o suficiente e, coitadinhos de nós!, ficámos cheiinhos de traumas e de carências e de coisas mal resolvidas. 
ah, tantas mentiras! 

uma semana na Escola e a tentação de dar o processo por concluído - que seja, por muito avançado, tipo 'agora já tenho um mestrado'. vestir, por exemplo, a máscara da sábia evoluída, da boa aluna que - tão querida - até teve um 'clic' quando o Emídio fez aquele movimento das mãos e que agora já é tão capaz de fazer sempre o caminho que a leva da mente ao coração... é mentira e não há sempre, só há dia a dia.
e reparo que estou sempre onde páro. estou sempre onde avanço. não estou nunca nem mais à frente, nem mais atrás: não é possível! não estou nem melhor do que estava antes da Escola, nem pior do que eventualmente vou estar no próximo mês - caso lá chegue. não estou nem mais evoluída nem menos. e observo. observo a mão louca, a mente a agitar-se, a ameaçar estrebuchar, a minar-me o presente com as dores do passado, a oferecer-me o doce veneno das projecções no futuro. a mente que mente a querer ter razão e que para isso vai buscar provas, exemplos, acontecimentos... 'claro que estás mais evoluída!...', elogia-me, 'repara como até já és capaz de desmontar-me...' ahaha! a mente esquizóide, tão querida, que até consegue imitar o doce pulsar do coração quando a isso se atreve, fingir-se quietinha, todos os truques são válidos para chamar a atenção.  

observo a mão quieta.
observo o coração que, sem se impor, se aproxima. não quer nada a não ser pulsar-me no peito. tanto lhe faz que eu seja mais evoluída - provavelmente nem sabe o que é isso. não quer convencer-me de nada, provar-me coisa nenhuma, apenas pulsar-me no peito e é tudo. não exige sequer que eu saiba o que é isso - pulsar-me no peito -, não me seduz para lhe alterar os batimentos, o ritmo. não me diz 'se me fizeres bater mais depressa, podes ser mais feliz' ou 'lembras-te quando parei de bater e quase morreste?'
pode durar um segundo, mas a paz que sinto é imensa... 

observo então que a vida é a Escola perfeita. que o papel da mente esquizóide é estrebuchar na loucura e que bom ser perita a fazê-lo!, ora deitando-me abaixo com todas as provas de que não sou boa aluna, ora mostrando-me onde é que já devia ser mais evoluída, ora enredando-me toda, confusa, no labirinto das suas mentiras, ora passando-me a mão pelo pêlo e, com falinhas mansas, elogiando-me a inteligência e a clarividência. tudo mentira e, no entanto, o que seria de mim sem estes seus estremecimentos? como seria possível saber a verdade se nunca me tivesse contado mentiras? como poderia aprender fosse o que fosse sem ela? e vejo que incha de orgulho, importante da sua importância, e que estrebucha, agora mais mansa, para que eu acredite que até é bom, afinal, dar ouvidos à sua loucura...

sem dizer nada, o coração aproxima-se. e mostra-me como nunca foi necessário, afinal, aprender coisa nenhuma para estar aqui, viva e presente. como diz o Emídio, a vida acontece sempre sem a nossa autorização. e é um descanso sabê-lo, mesmo que daqui a nada volte a esquecer-me.