sexta-feira, 19 de agosto de 2011

era uma vez uma coitadinha muito infeliz e assim

há dias em que a coitadinha assume o protagonismo e pede-me espaço para carpir as mágoas. ombros caídos, olhar cabisbaixo, um aperto no peito como se o mundo estivesse a esmagá-lo, e uma data de maus à espreita na esquina, prontinhos para lhe darem cabo do pêlo e lhe infernizarem a vida. é claro que a mais má de todas sou eu, sempre que a deixo acreditar que é uma vítima. aliás, não só deixo, como confirmo
pois é, coitadinha de ti
e ponho-lhe ainda mais peso nos ombros caídos, olho-a ainda mais cabisbaixa e cheiinha de pena
ai, ai coitadinha
esmago-lhe o peito até que sufoque de mágoa, acrescento uns gemidos ao pranto
ai ai ai
e alivio-lhe a responsabilidade de tomar conta de si, ao mesmo tempo que afago o pêlo de que todos os maus lhe querem dar cabo, quando lhe digo ao ouvido
nesse estado, coitada, ninguém é capaz de tomar conta de nada
alivio-me da incompetência de também não saber tomar conta de nada e lá ficamos as duas 
coitadas!
ombros caídos, olhar cabisbaixo, o peito apertado pelas conspirações dos maus e do mundo em geral.
ai tantas mágoas
diz ela.
ai tantas dores
gemo eu. 
depois aquilo passa, quando enfim sou capaz de a mandar dar uma volta, quando a afasto de mim como se fosse uma estranha doente que só me atrapalha, uma infeliz de uma egoísta de merda a querer contaminar-me com os seus ais.
até hoje, não resultou e há sempre um dia em que ela volta
ai, coitadinha
ombros caídos, olhar cabisbaixo, um aperto no peito como se o mundo estivesse a esmagá-lo, e uma data de maus à espreita na esquina, prontinhos para lhe darem cabo do pêlo e lhe infernizarem a vida. talvez por isso, ultimamente tenho tentado outra técnica. assim que pressinto que os ombros se encolhem e que os olhos procuram o chão, tomo-a no colo e embalo-a, apenas o tempo suficiente para que não adormeça e acorde. 
olha lá, minha parva
e digo parva com condescendência, às vezes até com carinho, e prossigo sem fazer caso dos olhos a ficarem húmidos
olha lá, minha parva, és capaz de me fazer uma lista das mágoas por escrito, em vez de começares a carpi-las só porque hoje acordaste virada para aí?
e ela começa
ninguém gosta de mim...
abraço-a e faço-lhe festas
isso é mentira, eu gosto de ti
o mundo é perigoso
e aponto-lhe a paz do meu colo
os outros são maus
e mostro-lhe como os maus são bons a ponto de lhe mostrarem onde é má para si própria e ela funga, a pedir compaixão, eu percebo, sai-lhe um suspiro muito grande, cai-lhe uma lágrima, sabe que se suspirar e se fungar e se chorar e se insistir, eu acabarei por ceder, não tarda e estarei a dizer-lhe outra vez
ai coitadinha
e então desenrola outra lista, a lista do 'devia ser'
eu devia ser mais capaz, mais feliz, mais inteligente, mais gira, mais competente, mais corajosa, mais forte, mais limpa...
desato-me a rir. e mostro-lhe, como a uma criança pequena qua parece ainda não ter consciência dos paradoxos do mundo, onde sou tão capaz de lhe dar colo e de a abraçar com verdadeira ternura e sem a julgar. onde sou tão feliz por a ter sempre por perto. onde sou inteligente a ponto de ter percebido, com mais lucidez nestes últimos tempos, que era urgente mudar de técnica. onde sou gira - gosto dos olhos, da boca, do riso, do rabo, dos braços, do ar de miúda. onde sou competente e tenho a coragem de nos trabalhar, a mim e a ela, para que cada vez possamos sentir-nos menos distantes uma da outra, para sermos só uma e completa. mostro-lhe onde sou forte e levanto-me, ainda com ela ao colo, sustenho o seu peso nos braços, e limpo-lhe as lágrimas.
quando vieres outra vez com a história da coitadinha para cima de mim
digo-lhe, a rir,
é provável que ainda acredite que tens alguma razão.
e ela ri-se também, possivelmente porque sentiu que, afinal, continua a ter chances de me enrolar
mas já nem sequer é ao meu colo que a tenho, mas aqui dentro, aqui dentro do peito que não está esmagado por mundo nenhum que me seja exterior, e é lá para dentro que falo, quando lhe digo, quando me digo,
a história do era uma vez uma coitadinha muito infeliz e assim é mesmo só isso: uma história. provavelmente, a mais velha história do mundo.

1 comentário:

  1. Obrigada pela inteligência e pela capacidade de te/me/nos "apanhar" e desmontar.

    Beijo
    Irene

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