sexta-feira, 7 de setembro de 2012

queres ler a sina, amor?

ainda não eram nove horas e já eu estava à porta do jardim tropical. só abria duas horas depois, às onze, e fui fazer tempo para os outros jardins de belém, àquela hora ainda sem os turistas de máquina ao ombro e sem as mães com as crianças e com o rio a servir de pano de fundo. estava lindo e eu ia contente, já de olhos pregados no chão em busca de matérias-primas, quando fui interpelada por uma cigana
 queres ler a sina, amor?
disse que não e ela aproximou-se.
 devias querer! vejo grandes perigos no teu futuro.
ri-me e abri os braços ao sol, dei uma volta sobre mim própria, como quem dança, e disse à cigana
 sou uma alma abençoada, não vês?
 por isso mesmo é que tantos perigos te espreitam
respondeu ela.
agradeci-lhe e segui caminho. não havia assim tantas matérias primas no chão, para além das folhas que o verão ia deixando cair, em tonalidades que iam do verde aos castanhos, passando pelos amarelos. tinha saído de casa com a intenção de ir ao jardim tropical, já a pensar no workshop de dia 21, em pleno equinócio de outono, para descobrir que tipo de matérias primas haveria por lá. 
estava de cócoras a apanhar umas folhas do chão quando a segunda cigana veio ao meu encontro.
 ai filha, tantas invejas que há sobre ti!
disse ela, ao mesmo tempo que me ia rondando.
levantei-me do chão e saudei-a
 bom dia.
 dá cá a mão que eu leio-te a sina
e estendeu a dela para mim e eu apertei-a e repeti o bom dia.
 a tua vida está cheia de pessoas que te querem fazer mal
disse a cigana.
de novo me ri, só que desta vez não dancei, dei-lhe uma palmadinha afectuosa no ombro e repeti o que já tinha dito à primeira
 sou uma alma abençoada por deus
e segui caminho.
a terceira cigana não me deixou dar nem três passos
 ó minha querida, não queres ler a sina?
agradeci e disse que não.
 fazemos assim, insistiu ela, se eu acertar, dás-me um euro, se eu não acertar não me dás nada.
mas eu, que ultimamente ando tão certa da minha sina que já não me deixo enganar facilmente, continuei a caminho de um pedaço de relva, onde jaziam uma série de flores. de cócoras, juntei-as e pu-las em círculo e depois fiz um círculo à volta do círculo e depois outro e mais outro e ali fiquei duas horas. 
a certa altura, uma senhora parou e quis saber se aquilo eram modelos para eu depois fazer em crochet e eu disse que não.
 mas olhe que até podiam ser
disse ela. e aproximou-se para poder vê-las de mais perto.
 esta aqui já me deu umas ideias!
e apontou para a primeira e explicou-se:
 é que eu também faço umas coisinhas em renda, percebe? as minhas amigas até têm inveja, porque eu sou muito jeitosa, e essa aí acho que ficava mesmo bem num naperon ou no centro de uma toalha ou assim.
estive quase para sugerir à senhora que fosse ler a inveja na sina, mas limitei-me a acenar com a cabeça
 é. num naperon ficava muito bem.
 mas isso é preciso muita paciência, não é?
quis saber a senhora e eu disse que sim.
e é paciência, sim, mas não é só. é sobretudo e acima de tudo presença. foco. atenção. e a partir daí tudo flui...
estava a ir-me embora quando a quarta cigana veio ao meu encontro. 
 ai tanta inveja que anda aí à tua volta, menina...
apontei-lhe a árvore e depois o pedaço de relva onde as mandalas dançavam e disse-lhe
 se me quiseres ler a sina, ela está ali escrita.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

fellini *



ia dizer que o encontrámos na rua, mas acho que é mais verdadeiro dizer que foi ele que nos descobriu e chamou a atenção. não faço ideia do que estaria a fazer instalado naquelas escadas, mas assim que passámos miou e a L., mais atenta do que eu aos barulhos do campo, disse logo :
 olha, mãe, está ali um gatinho. 
 deixa-o estar, disse eu. 
e segui.
mas ele voltou a miar e era um miar muito mansinho, nem sequer me pareceu que fosse um miado de mimo ou de quem pretendia inspirar compaixão, mas de pura bondade, de saudação, de presença.
 ó mãe, ele é tão querido, não é? 
insistiu a L. 
e, puxando-me a mão, obrigou-me a voltar para trás.
 acha que posso pegar-lhe?
achei que sim e a L., devagarinho, subiu os degraus da escada onde ele estava instalado e ele deixou-se pegar sem oferecer resistência. diria mesmo que se aninhou nos braços da L. e que os sentiu familiares e seguros. 
 vá, agora vamos embora, disse eu passado algum tempo. 
e seguimos.
o caminho foi todo com a L. a falar do gatinho. ou da gatinha, nessa altura tanto eu como ela achámos que era uma gata. e nem o espectáculo do sol a pôr-se por trás das serras acalmou a L. - que queria à força saber se, no regresso, podíamos passar de novo à frente da casa para ver se a gata ainda estaria nas escadas. 
disse que sim e passámos, mas já lá não estava.
 que pena!, suspirou a L. 
e não falou noutra coisas até serem horas de irmos jantar. 
 posso ir procurá-la?, pediu-me, mesmo antes de irmos para a mesa e, sem esperar pela resposta, saíu porta fora. voltou nem dez minutos depois, radiante, com a kitty nos braços, a rir e aos gritos
 temos uma gatinha! temos uma gatinha!
a M. veio a correr e disse
 ah, tão querida!
e a F.
 kitty? kitty é bué mau, temos de lhe arranjar outro nome!
nessa noite, depois de lhe termos aberto o portão para nos certificarmos se não quereria voltar à sua vida e às escadas, a kitty dormiu lá em casa, na cama da tia R. 
se foi do contágio entre a pele e os pêlos não sei, mas sei que, no dia seguinte, a tia R. acordou e reivindicou que a gata agora era dela, que ia levá-la para lisboa e que o seu nome passara a ser clementina.
 não é justo!, queixava-se a L., nós é que a encontrámos!
 sim, era o que faltava!, insurgia-se a F., ir para uma casa em lisboa que nem sequer tem jardim!
 mas depois podíamos ir lá visitá-la!, dizia a M., que no fundo achava que à tia R., que vivia sozinha, a companhia da gata seria mais útil. 
 se ao menos a mãe deixasse sermos nós a levá-la...
 deixa, mãe?, perguntou a F.
 deixa, mãe?, perguntou a M.
 deixa, mãe?, perguntou a L.
não disse que sim nem que não e, nos dias que se seguiram, limitei-me a observar. 
a gata, que se descobriu entretanto ser gato, passou a ser o centro das atenções e todos os dias, pela manhã, a L. e a M. vinham até ao meu quarto para me perguntarem,
 e então, mãe? já decidiu se podemos levá-lo?
ao mesmo tempo que a F. tentava provar-me que ele nos tinha escolhido e que precisava de nós.
disse 'não sei' até ao último dia e ontem, no último dia, dentro de um cesto de roupa onde, de início, odiou ser 'enfiado', o fellini fez connosco o caminho de volta para casa. 
temi que pudesse estranhar o jardim, que tivesse saudades das escadas e dos barulhos do campo, que se sentisse infeliz por o termos privado das canções das cigarras que, à noite, enchiam o pátio, mas não me parece que tenha estranhado ou sentido falta de nada, pelo contrário. anda por aí à vontade e aos saltos, de cada vez que uma borboleta lhe chama a atenção, já subiu ao telhado e a duas das árvores, esta noite dormiu com a F., de manhã foi a L. quem lhe serviu o pequeno-almoço e ainda há pouco estava refastelado no colo da M., a ver televisão.



sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Clara *




'Não há ali nada que desumanize o milagre, pelo contrário. Dentro das quatro paredes da sala, tudo é familiar. A volumetria do espaço, o Inverno a entrar pela janela, o limoeiro do jardim reflectido nos vidros, a temperatura dos pássaros.
Estão todos em casa. A mãe, o pai, a doula, a parteira, os quatro aguardando o nascimento de Luz. Desde o princípio da gravidez que Pietro e Clara decidiram que a teriam ali. Longe do bulício metálico dos hospitais, a salvo das contracções induzidas, das batas assépticas, das mãos de borracha, da vulgaridade com que, hoje em dia, se revolvem as águas maternas para que se escoem depressa, nem que para isso seja preciso alterar-lhes o curso ou violar-lhes as margens. Ali, nenhum dos cinco tem pressa. Não há urgência nenhuma para além do amor com que esperam por Luz.  Há duas horas que as contracções vêm e vão, cada vez mais fortes, mais regulares e menos espaçadas, o colo alargou-se três dedos.
De cócoras no chão, a mãe inspira e expira. Faz do ar um instrumento de sopro, afina-o pelo seu próprio corpo e pelo corpo da filha, para que a dança do parto se faça em uníssono e nada se parta, afinal. Dor e prazer conjugados num só movimento, quem foi que inventou que parir é a paga por ter comido a maçã? A ela, soa-lhe bem, sabe-lhe bem, não se queixa dos espasmos nos rins, Pietro massaja-os. Não se divide. São dois corações, mas o pulsar que os convoca para a vida é o mesmo. A doula mede-lhe o pulso e confirma as batidas.
- Ainda falta. Respira.
A contracção dá-lhe tréguas e Clara levanta-se. Dá uma, duas, três voltas à sala. Que bom não ter a clausura da maca, a imposição do sossego, a horizontalidade da espera a colidir com a verticalidade dos médicos – que evocam a ética para os procedimentos mais disparatados e se fazem valer dos maravilhosos avanços da técnica para amordaçar as parturientes. Em casa, está mais à vontade e mais livre. Pode deambular, como agora, ou pôr-se de gatas, de cócoras, beber um golinho de chá, estender-se no chão, enrolar-se nos braços de Pietro, deitada de lado, enquanto a doula lhe faz um pouco de reiki. Pode gemer sem pudor, gritar, ter dores à vontade, pois sabe que vêm e vão e que nenhuma é para sempre e que ninguém a manda calar. O ventre chega a parecer-lhe de pedra, mas é de carne, é de pele maleável, macia, não rompe e não rasga, não quebra, não abre, apenas ampara a descida de Luz através do canal e faz parte do seu papel ajudá-la a descer pelo seu corpo, preparar-lhe o caminho, facilitar-lhe a chegada.
- Respira... Isso, respira... Com calma... Inspiiiiiiiira... E expiiiiiiiira!...
O colo continua a alargar. A parteira confirma:
- Seis dedos. Está quase...
A noite avança do lado de fora dos vidros polvilhada de estrelas, o limoeiro adormece na relva, o Inverno esfria as asas dos pássaros, é quase Natal e há velas acesas pela casa toda.
Pietro está proibido de fotografar. Clara evocou “uma questão de intimidade” e ele compreende. No entanto, os seus olhos disparam. Registam imagens, texturas, expressões, emoções. O rosto de Clara coberto por pequeníssimas gotas de esforço, a curva da nuca encharcada, a humidade no fôlego, a doçura das mãos postas em concha à chegada do corpo, o arco das costas, o ventre convexo, a perplexidade perante tamanha beleza... tudo isto se vai revelando aos olhos de Pietro. Retém o momento em que a mulher se levanta, de novo. Ajusta as íris às sombras que a maternidade projecta, persegue a silhueta proeminente de Luz ainda coberta de ventre, a fluir na parede, o ângulo redondo da carne, o enquadramento dos seios, que Clara ampara nos braços como se fossem colheitas de Verão. Não tarda e terá a quem dar o seu fruto.
- Acho que agora quero ir para o quarto – diz, então, Clara.
A doula e Pietro acompanham-na, enquanto a parteira vai até à cozinha pôr água a ferver. As contracções intensificaram-se, está com oito dedos de dilatação, senta-se em cima da cama de pernas abertas, encosta-se à cabeceira. Respira. Não tarda e vai precisar de todas as forças para trazer Luz ao mundo.
- Isso, respira... respira... respira.
Sente-a então a descer, devagarinho a caminho da vida cá fora, dor e prazer misturam-se agora no fundo do corpo. Está quase a expulsá-la, mas acha “expulsão” uma palavra forçada, pois não a expulsa de lado nenhum, apenas empurra para fora de si um ser que já não lhe pertence, que apenas gerou nas suas entranhas e que alimentou com o pulsar do seu coração.
- Está quase! – diz a parteira, e Clara faz força.
Faz toda a força que tem, mas ainda não chega. Pietro, ao seu lado, faz força também. Clara sente que lhe dói tudo, que o esforço que falta a transporta para fora de si, vê o tecto a abaular-se e a cama parece feita de espuma. Está quase, repete para si mesma, baixinho, entre dentes, ao mesmo tempo que, novamente, faz força. É então que sente a cabeça de Luz entre as pernas. É tudo tão rápido que não tem tempo para pensar em mais nada. A dor deu lugar ao prazer, sente-a a escorregar por entre as coxas suadas, já não força mais coisa nenhuma, rende-se apenas a esse milagre que é ser capaz de gerar uma vida a partir do amor. A parteira pega-a ao colo e Luz convoca a alegria de todos, o seu choro não é um lamento, é um hino de estreia. Luz respira e toma conta da cama e do quarto. É Pietro quem corta o cordão, ao mesmo tempo que sente criar-se um laço invisível que unirá para sempre três seres. Está tão comovido que desfoca as imagens, a voz sai-lhe tremida, tem vontade de se deitar ao lado de Clara e de Luz e é isso mesmo que faz, testemunhando como se encaixam as duas tão bem e aproxima-se mais.
Depois do esforço e da glória, depois do louvor e do espanto, a filha ainda cabe na mãe, agora do lado de fora do corpo. Enrosca-se nele, parece que a curva do peito foi feita a pensar no seu porte, minúsculo, que a penumbra da pele se projecta a partir do novelo que as duas compõem. Respiram, compondo um dueto perfeito. O ar amansa a chegada do dia, o limoeiro e a relva acordaram, as asas dos pássaros estão cobertas pela penugem dos anjos, sopra uma aragem dentro do quarto. E, no entanto, Luz estranha, talvez, a consistência a vapor. É demasiado gasosa para quem viveu meses a fio dentro de um mar de água doce. Por isso, procura-o na mãe, agora do lado de fora do corpo. Tem fome da espuma, guarda ainda a memória das ondas na boca, precisa de embalo, de amor, de alimento. Quando, enfim, o encontra, nos seios sumarentos e generosos de Clara, Pietro regista o momento, a sustentabilidade da vida, o amor. Desta vez, com a lente da Nikon, embaciada pela comoção dos seus novos olhos de pai.'


sexta-feira, 29 de junho de 2012

mães como nós *


aqui





há histórias que são verdadeiras, 
mas que não são reais. 
há vidas que são reais, 
mas que não são verdadeiras.


quinta-feira, 31 de maio de 2012

who cares ?



é um bom truque. usei-o milhares de vezes e há dias em que ainda o uso. costumava resultar, este meu truque. com a minha mãe, por exemplo, resultava muito bem. fechava-me no quarto e saboreava a insistência com que ela batia à porta e me pedia 
vá lá, deixa-me entrar.
e eu que não, que não deixava, e ao mesmo tempo desejando que insistisse, que não deixasse de pedir-me
vá lá, deixa-me entrar.
e, às vezes, eu deixava e o bem que me sabia!, confirmar que se importava, que me amava a ponto de não permitir que me trancasse ou que ficasse a tarde inteira a consumir-me, o bom que era ser capaz de consolar-me, mas também havia dias em que ela desistia e me deixava entre a raiva e a frustração, entre a carência e a agonia, imbuída em auto-comiseração e com a certeza - absoluta! - de que, afinal, a minha mãe já não me amava.
o mesmo truque foi usado com o pai, com a avó, com as tias, com amigas, namorados... e assim me afeiçoei a ele. mais do que um truque, era uma forma de aferir até que ponto é que os outros se importavam, até onde é que estavam disponíveis para amar-me e em que medida é que valia a pena investir neles.
e se hoje em dia ainda recorro ao truque, se muitas vezes continuo a erguer muros para que os outros os derrubem e me provem que se importam, para que venham dar-me colo e 'destrancar-me' o coração, também descubro que ninguém, a não ser eu, pode fazê-lo. só eu construo ou descontruo o que me une ou me separa. só eu me importo o suficiente para ir tendo a consciência de que ninguém derruba os muros que vou erguendo à minha volta a não ser eu.



segunda-feira, 14 de maio de 2012

*.






há dias que não cabem nas palavras porque as excedem. 
porque propositadamente as excluem.
..

hoje foi um desses dias *.

terça-feira, 8 de maio de 2012

atiras-te


na direcção dos meus braços e não tenho como não te acolher. há muito tempo que dizes que os abismos te atraem, que passas os dias à beira de precipícios, arribas, falésias, que é para tudo aquilo que te provoca vertigens que corres. mostro-te o disparate que é gostar do assombro quando nele não existe mistério nenhum, apenas lacunas, a inutilidade de te vires despenhar no meu colo com a estúpida esperança do caos...
há uma ordem na pele, ou não sabes?, uma elasticidade nos músculos, uma espécie de amparo na matéria que não permite que as almas se matem, um desígnio qualquer que impede que morram, por mais que os teus ossos estalem de encontro aos ossos do tempo e, mesmo assim, tu atiras-te. atiras-te à espera que eu feche os braços, 
é isso? 
à espera que o precipício te engula, que no chão da falésia o mar te dissolva e que seja a espuma, muito mais do que o sangue, a substância que irá dar brilho às estrelas.
atiras-te, 
vê só que ironia!, 
como se os braços não fossem os teus, afinal, não reparas sequer na penugem que os cobre, como se as asas humanas da mortalidade não pudessem cumprir o desejo que tens de voar, voar em vez de cair, voar em vez de atirar com o corpo para o fundo de um poço que o espaço não tem, voar em vez de mentir e ainda ontem te disse que é só na verdade que posso acolher-te, 
ou não disse? 
já te falei mais de mil vezes nas crenças que temos, mas que não passam disso, mostrei-te lugares que nem as palavras sabem dizer, acolhi-te de todas as vezes em que te atiraste, imagino que na expectativa de adivinhares o futuro e vê só no que deu, repara como é inútil fugir ao presente, a não ser para rapidamente o transformares em passado sem que o tenhas vivido, provado, sem teres saboreado um único dia de chuva, tal era a ansiedade com que esperavas pelo sol,
faz sentido?
é provável que não, que para quem nos veja de fora não faça sentido nenhum, que ninguém compreenda do que falamos, nós duas, quando uma se atira nos braços da outra e a outra não tem como não se acolher a si própria e o disparate que é,
estás a ver?
gostar do assombro quando nele não existe mistério nenhum.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

ontem

um amigo dizia-me que estava cansado das exigências de uma relação. nem sempre percebo, quando os outros me falam dos seus vários cansaços, ou até de outras coisas que sentem, por isso também não sei se percebi qual era, afinal, o cansaço a que ele se referia. porque é dele, não é meu. 
temos esta mania de que somos capazes de vestir a pele dos outros e de sentir o que eles sentem. não somos. mesmo assim, procurei na minha pele o cansaço. procurei todas as relações que me desgastam ou que sinto que exigem de mim o que acredito que não tenho para dar. não houve uma só que escapasse! a relação com a minha mãe, por exemplo. cansa-me ouvi-la a desfiar as doenças e a contar-me das idas ao médico e a pedir-me que dê atenção ao seu sofrimento. cansa-me, a relação com o meu pai, quando me faz mil perguntas sobre o que ando ou não ando a fazer, quando parece exigir que eu faça mais e melhor e me diz que tem pena de me sentir tão aquém das minhas capacidades. cansa-me, a relação com a minha filha mais velha, ultimamente numa montanha de altos e baixos, ora a rir-se que nem uma histérica, com a música aos gritos, ora a chorar-me nos braços e a perguntar-me "porquê" porquê? porquê?" cansa-me, a relação com o meu filho, às vezes tão malcriado que só me apetece dar-lhe tabefes na cara, abaná-lo e perguntar-lhe se acha que a vida é só futebol, obrigá-lo a estudar, pedir-lhe satisfações quando tem negativas nos testes. cansa-me, a relação com as duas mais novas. quando uma quer saber, naquele exacto momento, se pode convidar vinte amigos para os anos - que só irá fazer dali a seis meses - e a outra me esgota a paciência, quando demora vinte minutos a engolir um prato de sopa. 
cansa-me, sim, o quotidiano de que também são feitas as relações. cansa-me ter de gerir as rotinas, as expectativas, as ilusões e as desilusões, os contratempos, os desacertos, os ritmos... cansam-me, acima de tudo, os mil pensamentos que caem, a cada segundo, sem que eu sequer me aperceba. 
no fundo, o que mais me cansa é pensar. 
se for honesta, não é a relação com a minha mãe que me cansa, mas a ideia de que é cansativo ter uma mãe sempre a queixar-se e a expectativa de que seria tão bom se parasse. que descanso seria, se o meu pai nunca mais me perguntasse mais nada, porque só de pensar que vai perguntar, já fico cansada. se a filha mais velha não andasse aos altos e baixos, e os meus pensamentos aos altos e baixos, aos altos e baixos, aos altos e baixos, cansava-me menos. se não pensasse que o meu filho devia pensar noutras coisas, não me cansava a pensar nas coisas em que acho que ele devia pensar.
confuso? talvez. mas reparo que o cansaço, o cansaço maior, vem do que exijo de mim. que a relação que mais me desgasta, e afinal a única que posso mudar, é a que tenho comigo. cansa-me, aquele eu que se queixa e que me pede que dê atenção ao seu sofrimento. cansa-me o eu que me diz que estou aquém das minhas capacidades e que devia fazer muito mais do que faço, cansa-me o eu que vem dar aos meus braços num pranto e que me pergunta "porquê? porquê? porquê?". cansa-me acreditar que devia pensar noutras coisas e, afinal, pensar sempre nas mesmas. cansa-me antecipar, talvez não festas de anos, mas futuros para todos os planos, pormenores para cada um dos meus sonhos, cansa-me sobretudo pensar que provavelmente não sairão como quero, não serão como sonho. cansa-me demorar tanto tempo a engolir tantas coisas e mastigar outras tantas... 
canso-me, canso-me imenso, canso-me tanto, quando a relação que tenho comigo não me satisfaz, quando penso em tudo o que queria fazer, em vez de estar atenta ao que faço, ou quando penso que devia ter feito isto ou aquilo de outra maneira, quando penso em desfazer o que fiz e, em pensamento, desfaço e refaço e desfaço e refaço e desfaço e refaço... canso-me. quando penso mais logo, mais tarde, quando penso "e se?", "e depois?", quando vou buscar provas, acontecimentos, razões para me convencer de que tudo o que penso é verdade.
e então não sei se era deste cansaço que o meu amigo me falava ontem, se era desta exigência da mente, que nos faz estar sempre a pensar numa coisa qualquer, deste constante ir e vir que temos connosco, desta relação entre o corpo e a mente e o espirito, de todas as partes a que é preciso atender para sermos um todo. este cansaço de todos os dias nos vermos ao espelho, de nos relacionarmos com facetas de nós de que não gostamos, este cansaço de nos sentirmos humanos e frágeis e cheios de defeitos e a canseira que é, levarmos com isto todos os dias, sem nunca podermos fugir à relação que temos connosco e, acima de tudo, aos pensamentos que nunca paramos de ter :: sobre nós próprios e sobre os outros.



t e r r a *.


hoje voltei a lembrar-me. já noutro dia me tinha lembrado, quando cheguei ao ar livre e me cheirou a terra molhada. e precisei de tocá-la, porque só o cheiro não chegava, tinha de tê-lo colado aos meus dedos, apeteceu-me esfregar a cara, o corpo, a pele toda, queria que tudo tivesse a textura da terra, como daquela vez na cabana, em que suei e gemi de encontro ao seu ventre.
ando a revolver as águas maternas, talvez seja por isso que choro
ultimamente tenho chorado
tem chovido e o cheiro da terra devolve-me ao útero, reconduz-me às entranhas, aos lagos fecundos e femininos do corpo, às dores ancestrais das mulheres, à gestação dos afectos, à humidade do mundo. 
mães. é disso que tenho andado a tratar e, neste momento, tenho uma a queixar-se, uma mãe de papel que se queixa da ausência do pai, da ausência dos pais, como se assim só fosse metade.
metade de mãe.
levará o seu tempo até que descubra onde é que se parte, pode até ser que nunca descubra, ainda não sei.
chove e a terra traz-me a promessa: não há nada que me separe. e volto ao colo que me dá, de cada vez que me rendo. volto a lembrar-me de tudo, até sem saber o que é tudo. das viagens que faço de olhos fechados, do embalo das marés, da vulnerabilidade das aves, da orfandade dos anjos, coisas que invento, talvez seja disso que constantemente me lembro.
voltei a lembrar-me de mim, de me terem rasgado as entranhas, dos hinos de espanto e louvor que vieram dar ao meu colo, de as cicatrizes, umas por cima das outras, serem a prova inquívoca de que as dores saram.
voltei a lembrar-me de todas as mães que já tive. das mães todas que tenho.
heranças, memórias, paisagens, pinhais e tenho uma mãe que plantou um no campo, manso como convém a quem procura um abrigo debaixo da copa das árvores, mais uma mãe de papel expiando o contágio da carne, nunca sei se é na ficção que imito a realidade ou se é com a vida que atiro para cima das minhas mães de papel, para que me aliviem da carga.
não sei, mas voltei a lembrar-me.
naquele dia, voltei a lembrar-me e hoje, mais uma vez, a chuva promete voltar e molhar tudo em volta: a relva, as memórias, as pálpebras. há uma série de coisas que me atravessam a alma quando verto palavras, quando quero converter o que sinto na escrita, há sempre uma parte que falta, um lugar indizível ao qual as palavras não têm acesso, um intervalo entre a voz e o peito. averiguar a verdade é inútil, portanto. é inútil esquecer-me de tudo e foi disso mesmo que hoje voltei a lembrar-me.

sábado, 7 de abril de 2012

aleluia

que o torpor da morte não nos mergulhe no desespero de uma ausência, mas antes na doce tranquilidade da espera e no milagre de continuados renascimentos. há anos que não vou à missa, os dogmas em que a igreja se encerra estreitaram-me as margens do voo faz já muito tempo, prefiro a eternidade do espaço e do tempo às lei do jejum, a fé ampliada no peito às genuflexões em veludos de confesssionário, quando os homens se deixam levar pela bondade e abrem os braços, vejo neles a mesma penugem que cobre as asas dos anjos.
que me perdoem os crentes, que buscam na liturgia a redenção dos pecados e na hóstia o encontro com deus, a mim faz-me sentido o mundo inteiro e cada um dos seres que o habitam morrendo e ressuscitando a cada dia que passa, faz-me sentido o céu mudando de tonalidade ao longo do dia, a comunhão de todos os seres numa essência comum, faz-me sentido experienciar deus nos gestos mais simples do quotidiano.
cristo não é sequer - para mim - uma metáfora do mártir, mas um homem comum que soube elevar-se acima dos condicionamentos e das contrariedades e dos caprichos e que, benignamente, deixou que a sua luz ficasse ao alcance de todos aqueles que escolhem viver de olhos abertos.
aleluia e talvez o significado da morte não seja mais do que um momento de pausa, um intervalo entre o que fomos e o que iremos ser, a conscência de que a cada instante das nossas vidas somos tudo o que somos e de que há uma páscoa presente em cada uma das nossas células. e se é certo que os homens precisam de histórias, que precisam de uma linguagem de símbolos para se situarem na realidade dos mitos, não é menos verdade que a alma se sobrepõe aos arquétipos. de que nos serve a celebração do mistério pascal se ao longo do resto do ano, se ao longo do resto da vida, não formos capazes de ressuscitar do sono mortal de todas as noites e de, a cada manhã, nos descobrirmos abençoados pelas infinitas possibilidades de recomeçarmos tudo de novo?

sexta-feira, 6 de abril de 2012

tantas!



as coisas que tenho para te dizer e que trago guardadas à espera do dia em que me saibas ouvir. não é falta de tempo nem de vontade nem de paciência, é simplesmente não teres ainda focado a tua atenção no meu peito e continuares à procura do movimento e dos sons nos meus lábios. como se as coisas que tenho para te dizer estivessem no movimento e no som das palavras. não estão e é por isso que as trago guardadas. para já, estão guardadas em mim até sentir que és capaz de as ouvir sem que eu diga nada. parece-te estranho e eu sei, que achas estranho o silêncio atrás do qual me resguardo, estranha esta maneira que tenho de falar contigo sem que os músculos do meu aparelho fonético se ponham em marcha, estranha a possibilidade de poder haver um canal onde nenhum ruído humano interfere nas mensagens que o céu nos envia.

sim, podia escrevê-las aqui, é verdade, essas coisas que tenho para te dizer, mas que esperam pelo dia em que possas focar a tua atenção no meu peito. posso escrevê-las agora e esperar que as descubras, que afinal se revele o que guardo através de um canal de néon. mesmo não sendo sequer parecido com a luz que entrevejo cá dentro, é perfeitamente capaz de acolher o que sinto. aviso, porém, que aqui sim, há ruídos que podem interferir, ruídos humanos, como a polpa dos dedos tocando nas teclas, mas também o ruído dos pássaros todos lá fora, a esvoaçar sobre a relva e a debicar a roseira, o murmúrio do mar lá ao fundo, de cada vez que desata a dar beijos à areia, a plenitude da lua a encher-se de branco e hoje estará cheia, em Balança, homenageando, talvez, os desequilíbrios humanos e as metades que nem sempre sabemos juntar para nos tornarmos inteiros. a lua em Balança, o sol em Carneiro, é-me familiar o eixo que liga os dois astros e o desejo de que se encontrem a meio do caminho.

tantas!, já reparaste?, as coisas que já nos dissémos e que não passaram de ideias, as palavras todas com que afastamos presságios, a ilusão de que fazem sentido, a evidência de que geram equívocos. trago mil coisas guardadas cá dentro que só são verdadeiras porque não são dizíveis. mil coisas guardadas à espera do dia em que não seja mais preciso dizê-las porque as sentimos tal como são e não como nos parecem, quando são ditas e ficam aquém do que somos. 
como os olhos às cores que colei por cima dos teus e que apenas nos provam que a humanidade, no que a ti diz respeito, olha para o mundo através do azul. fosse eu acreditar que era só isso, humanidade e mais nada o que os teus olhos revelam, e nunca seria capaz de ver para além dela. e, no entanto, aqui estamos nós, separados pela distância ilusória do espaço e as nossas almas livres no éter, acima dos planos comuns que traçaram para os dois quando descemos à terra e as moldámos à carne e ao quotidiano. 

e, sim, é possível que de repente nada faça sentido, que tenhas perdido o fio à meada, que aches estranho o que eu escrevo, que não seja nunca possível dizer-te o que trago guardado a não ser que se deixem de ouvir os ruídos humanos que interferem com o desejo das almas. o que sei, o que sinto, é que vivemos cheios dos caprichos humanos, cheios dessa vontade comum dos mortais de esgotarem as forças, vivemos a acreditar na separação e na dualidade do preto e do branco. e, sim, agora perdi o fio à meada e a leveza que hoje sinto nem sequer vem das coisas que trago guardadas para te dizer, mas da certeza de que não há nada que te eu possa dizer que tu ainda não saibas.

e mais?


despregar os olhos da cruz


que o sofrimento engrandece e que aumenta exponencialmente as hipóteses de nos tornarmos mais fortes, mais sábios e mais evoluídos, já todos sabemos. e não é para quem quer, é só para quem pode, como se se tratasse de um luxo, de um mérito reservado aos eleitos, de uma qualidade dos mártires, embora também assole, afinal, todo e cada um ser mortal que se preze, feito da carne comum que a todos nos cobre. sofrer. sofrer muito. sofrer até que não haja mais nenhuma célula que não lateje de dor. sofrer nem sequer até dizer chega, porque não há nada que chegue, nem sempre há algo que faça passar, alguma coisa que cure, que alivie, a não ser sofrer ainda mais e aguentar firme, enquanto mágoas e dores nos rasgam por fora, ao mesmo tempo que nos comem por dentro. 
temos todos dias assim, vidas assim, manias assim. a imagem de Cristo na cruz, com as mãos e os pés esventrados por pregos e coroada de espinhos, deixou-nos gravada nos genes esta certeza de que só quem sofre até aos limites pode algum dia vir a alcançar as alturas, o paraíso, o reino dos céus. experimentem passar os vossos dias na calma beatitude dos que não padecem de qualquer espécie de mal, dos que não se queixam de nada, não são acometidos por espamos nem febres e verão como é pouco o respeito que colhem em troca. quem não sofre, por pouco que seja, não é digno de compaixão, de carinho, de mimos. tão pouco é normal, já que o normal, humanamente falando, é sofrer. e então agarramo-nos à normalidade, agarramos-nos ao sofrimento, carregamos cruzes às costas até ficarmos em sangue, até ficarmos exangues, esventramos os pés e as mãos e o peito e exibimos as feridas como se fossem medalhas de guerra. e assim vamos ganhando algum mérito, conquistando a compaixão dos que nos rodeiam, que nos pegam ao colo e que nos fazem festas e que nos limpam as lágrimas, ao mesmo tempo que dizem "pronto, pronto, já passa". com sorte, somos aquele ou aquela "que já sofreu tanto" e isso, de certa forma, dá-nos estatuto, dá-nos credibilidade, dá-nos alento e razões para não abrirmos mão de tudo o que nos queima por dentro. não concebemos sequer a possibilidade de o sofrimento ser só uma ideia, um conceito, um preconceito, uma herança. e sofremos até quando não queremos sofrer. sofremos para não sofrer mais.
despregar os olhos da cruz é negar a nossa própria humanidade e é por isso que nos é tão difícil fazê-lo. quem seríamos nós, sem dores e sem feridas? quem seríamos nós, se não houvesse mais nada de que nos queixássemos? quem seríamos nós, se Cristo afinal não tivesse sido cruxificado? e, no entanto, todos nós temos dias assim, pedaços de vida sem dor, momentos em que despregamos os olhos das feridas, alturas em que sofrer nos parece, afinal, o maior dos absurdos e o desperdício mais estúpido. quase me atreveria a dizer que, quando largamos as nossas dores, quando as esquecemos, quando nem sequer nos lembramos que as temos, não sabemos quem somos. a leveza que toma conta de nós parece irreal, levitamos como se não houvesse mais peso, tornamo-nos anormalmente felizes. humanamente, porém, é impossível que o sofrimento nos tenha deixado para sempre a gozar dessa anormalidade, ou então seríamos anjos ou qualquer outra coisa que a matéria não pudesse atingir. 
mas somos humanos, pois é. não deixou de haver carne nem sangue, não deixou de haver cruz, não se escoou do nosso corpo a memória das dores ancestrais, nem nós saberíamos o que fazer se o lugar onde sempre as guardámos desaparecesse sem deixar rasto do nosso mapa genético. e, de novo, sofremos. sofremos tanto, sofremos por tudo, sofremos por nada, sofremos até quando não sabemos por que é que sofremos, quase como se a dor fosse uma prova de vida, uma garantia de que continuamos aqui, uma maneira de ocuparmos o tempo, um mérito que um dia nos fará ser merecedores da redenção e da glória dos céus. 
e então desprego os olhos da cruz, palpo o meu corpo e não encontro uma única chaga, não há sequer cicatrizes de feridas antigas, não me dói nada. desfaço a noção que tenho de mim como um punhado perene de ossos, de órgãos, de células, de músculos e nada lateja. ponho as mentiras de lado e desligo os ecrãs onde, repetidamente, se projectam todos os filmes desde que nasci até hoje e alguns outros que nem sequer aconteceram ainda. escrevo 'paixão' na certeza de que as palavras nem sempre falam verdade. é sexta feira e a paixão de hoje exala um hálito trágico que não vou respirar. e escolho escrevê-la sem recorrer à memória de nada, mas apenas à terra que habito. pai chão. e Cristo surge-me então como uma luz de presença benigna. e o milagre da cura é segui-la sem deixar que se apague, já que é apenas no escuro que o sofrimento se acende.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

estende-se ao sol.


há dias e dias que o céu lhe chega banhado de azul
e agradece e diz
obrigada
em voz alta.
dias em que fala com ela, até quando parece que fala com ele.
obrigado
diz ele em voz baixa.
estende-se ao sol e isso é tudo o que importa neste momento ::
reparar no céu abaulado
tum tum
sentir-se banhada de azul ::
obrigada ~



de verde :
diz ele
e ela mostra-lhe a relva.
estende-se ao sol e mostra-lhe a relva e ele diz :
antigamente deitava-me aqui mas agora não posso porque a pintaste de azul.
é só uma crença
diz ela
e o céu fica banhado de verde. 
não tarda e haverá bunganvílias vermelhas a trepar pelos muros
é outra vez primavera
diz ela
e estende-se ao sol e renasce para o céu, renasce para a relva, renasce para ela.
tum tum
e ele nada ::
não quis banhar-se de azul nem lhe abriu as asas.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ɐ l ʄ ɑ ɓ ɜ ʈ θ ʂ ~*.


acreditam que sim, que falam a mesma língua.
que ele dizer
amo-te
e ela
ɐɱθ~tɜ
os irá levar ao mesmo refúgio e que irão servir-se das mesmas metáforas, dos mesmos padrões, das mesmas vivências. 
ou seja, irão entender-se.
ele bate
tum~tum
ela ouve
⊺ʉɱ::⊺ʉɱ
e abre-lhe ɒ ƥθʀʈ∀
mas ele não entra, porque não vê porta nenhuma.
os alfabetos são como os afectos
diz ela
cada um tem os seus
e mostra-lhe os dela ::
ɐ l ʄ ɑ ɓ ɜ ʈ θ  ɖe ∀fəc⊺⊙ʂ
se lhe falarem de afectos, talvez não saiba o que são.
afectos
diz ele
e ela não sabe o que são.
∀ɱ⨀ʁ?
e ele não reconhece a expressão.
mas, sim, acreditam :: que falam do mesmo. 
falam de ʈuɗɸ e ʈuɗɸ é um mundo
tudo e nada e um mundo para ele
ʈuɗɸ ɜ ɴɐɖ∀ ⋿ ʋʍ ɱ∪nɖ⨀
para ela.
falam sempre do mesmo :
só que em línguas diferentes.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

ou é, ou é ::

e dispôs as palavras em círculo.
vais fazer uma mandalma?
quis ele saber.
vinha de humano, hoje vinha de humano e tinha voz de homem. não tinha batido à porta e entrara sem pedir-lhe licença
tum tum ::
quem entra assim é o anjo
disse ela
mas tu tens de pedir licença
e ele pediu :
posso entrar?
~
ou és um anjo, ou és um homem
disse ela
e dispôs mais palavras num círculo menor e já eram dois círculos, um dentro do outro.
tens a certeza?
perguntou ele
mas continuou a dispor as palavras em círculos e não respondeu e ele insistiu :
se for homem não posso ser anjo e se for anjo não posso ser homem, é isso?
não é isso
disse ela.
e já ia no sexto círculo.
são sete
e mostrou-lhe e ele disse
sempre é uma mandalma, afinal.
~
ou és um homem-anjo, ou és um anjo-homem
disse ela.
qual é a diferença?
quis saber ele.
concentra-te só na mandala  
disse ela.
e ele concentrou-se ::

ou és um homem-anjo e vês a mandala de fora para dentro, ou és um anjo-homem e és tu que a teces ::
de dentro para fora.
percebes?
o homem-anjo tece os casulos e o anjo-homem :: as asas
tum tum ::
ah
disse ela, quando o viu levantar-se
e só mais uma coisa :
da próxima vez :: bate à porta '


:: :: ::
continua

sábado, 11 de fevereiro de 2012

és carne viva

disse ela.
e ele encolheu-se e pediu-lhe
não toques.
mostrou-lhe as feridas:
aqui
e aqui
e aqui.
tantas!
disse ela.
ardem, não toques
voltou ele a pedir-lhe.
e então ela lembrou-se do anjo, lembrou-se de como nunca nada lhe ardia, nessa altura era ela quem se encolhia, apontava-lhe as feridas e o anjo lambia-as até que ficassem em crosta e dizia ::
põe-te ao sol que isso sara
e ela durante dias a fio exibindo as feridas à sombra.
aqui
e aqui
e aqui.
deitava-se à noite e as cartilagens rangiam, de cada vez que mudava a disposição dos fantasmas nos sonhos, as estrelas ardiam de cada vez que o céu não se abatia sobre ela.
põe-te à luz
dizia-lhe o anjo
apontava-lhe a carne viva do coração e ela dizia
arde
e pedia
não toques.


:: :: ::
continua

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

anda


disse ela
puxando devagarinho os seus olhos até ao lugar onde deixavam de ver.
fazia tão escuro que achou que cegava.
não puxes
e ela parou.
isso cansa
disse ele.
sabia que sim e que era por isso que adormeciam todos os dias estoirados, de luz apagada.
cegos
disse ela
e ele repetiu ::
isso cansa.




:: :: ::
continua

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

se havia ali um par de asas, ainda não se notava




mas notam-se os braços
disse ele.
e abriu-os para ela e estavam cobertos de penas humanas. 
não chega
disse ela
e doeu-lhe.
que pena
disse ele
e voltou a fechá-los.




:: :: ::
continua

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

a humana~idade do anjo

tum tum
e batiam à porta.
quem é
perguntou ela :
e era o técnico, desta vez para arranjar um esquentador empanado e por isso foi rápido, não houve conversas, tão pouco referiram as buganvílias que, nesta altura do ano, trepam sem flor às paredes, ele chegou a meio da manhã e foi directo ao esquentador empanado, demorou-se quarenta e cinco minutos, nem sequer levou muito caro - já que vinha da parte da pedicura da mãe de uma amiga - no final deu-lhe um aperto de mão e ela disse
muito obrigada
e foi tudo.
depois do almoço, batiam de novo e agora era ela
tum tum ::
e ele veio abrir e ela achou-o :
cansado ~


:: :: ::
continua


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

os anjos são fáceis de amar

disse ele.
tantos dias de ausência e ei-lo de volta, algodão a cair rente à janela do tecto, um novelo de luz mansa colando-se ao vidro
voltaste!
disse ela.
e sentiu o bater das asas aceso quando abriu os braços para o ir saudar ::
que saudades!
::
batia como já tinha batido outras vezes, batia naquela cadência que só os anjos sabem trazer, num silêncio pausado, profundo, batia sem descompasso nenhum ~ amorosamente ~ , a gravidade em torno do eixo puxava-o para o centro com tanta leveza que deu por ele instalado no peito.
tum tum.
os anjos são fáceis de amar
voltou ele a dizer, agora do lado de dentro e sem abrandar o pulsar
tum tum.
repara ::
e chamou-lhe a atenção, criando-lhe ainda mais espaço na alma, como se fosse uma espécie de ardor e a luz entrasse por ele às golfadas, e a seguir continuou a soprar.
somos perfeitos, bonitos, bondosos ::
os anjos são a graça de deus
brincou ela.
Graça
corrigiu ele 
e estendeu o milagre até Deus e depois distendeu-o de volta à humanidade e a seguir suspirou ::
os homens são difíceis de amar.
pareceu-lhe cansado e ela tossiu.
no peito, o novelo de algodão relembrou-lhe o pulsar
tum tum ::
olhos de luz
lembrou-se ela, e veio-lhe um travo a perfume.
diz-se que vêem o fundo do fundo...
diz-se que sim
disse o anjo.
e acrescentou que o fundo do fundo é :: cristalino ::
enroscaram-se mais e, de cada vez que se enroscam assim, ela lembra-se das bunganvílias e do terraço e de terem brindado à morte do anjo, pouco depois se ter despenhado na praia, e riem-se os dois. 
tum tum ::
se eu não fosse um anjo, tu não me amavas assim ~
disse o anjo.
e, quando ela voltou a tossir, ele dispôs-se a mostrar-lhe o seu lado humano e voltou a dizer-lhe :
- os homens são difíceis de amar.
::
ficaram assim. ainda enroscados e ela a lembrar-se do anjo à mercê da praia mortal, da multidão e das câmaras, do suor das palavras, das cartilagens sangrando e uma mancha de pele enclausurando-lhe as asas
já volto :
disse ele

e então também disse que, quando voltasse, teria voz de homem e ~ provavelmente ~ viria de luz apagada.
tum tum ~



:: :: ::
continua

daqui