sexta-feira, 6 de abril de 2012

despregar os olhos da cruz


que o sofrimento engrandece e que aumenta exponencialmente as hipóteses de nos tornarmos mais fortes, mais sábios e mais evoluídos, já todos sabemos. e não é para quem quer, é só para quem pode, como se se tratasse de um luxo, de um mérito reservado aos eleitos, de uma qualidade dos mártires, embora também assole, afinal, todo e cada um ser mortal que se preze, feito da carne comum que a todos nos cobre. sofrer. sofrer muito. sofrer até que não haja mais nenhuma célula que não lateje de dor. sofrer nem sequer até dizer chega, porque não há nada que chegue, nem sempre há algo que faça passar, alguma coisa que cure, que alivie, a não ser sofrer ainda mais e aguentar firme, enquanto mágoas e dores nos rasgam por fora, ao mesmo tempo que nos comem por dentro. 
temos todos dias assim, vidas assim, manias assim. a imagem de Cristo na cruz, com as mãos e os pés esventrados por pregos e coroada de espinhos, deixou-nos gravada nos genes esta certeza de que só quem sofre até aos limites pode algum dia vir a alcançar as alturas, o paraíso, o reino dos céus. experimentem passar os vossos dias na calma beatitude dos que não padecem de qualquer espécie de mal, dos que não se queixam de nada, não são acometidos por espamos nem febres e verão como é pouco o respeito que colhem em troca. quem não sofre, por pouco que seja, não é digno de compaixão, de carinho, de mimos. tão pouco é normal, já que o normal, humanamente falando, é sofrer. e então agarramo-nos à normalidade, agarramos-nos ao sofrimento, carregamos cruzes às costas até ficarmos em sangue, até ficarmos exangues, esventramos os pés e as mãos e o peito e exibimos as feridas como se fossem medalhas de guerra. e assim vamos ganhando algum mérito, conquistando a compaixão dos que nos rodeiam, que nos pegam ao colo e que nos fazem festas e que nos limpam as lágrimas, ao mesmo tempo que dizem "pronto, pronto, já passa". com sorte, somos aquele ou aquela "que já sofreu tanto" e isso, de certa forma, dá-nos estatuto, dá-nos credibilidade, dá-nos alento e razões para não abrirmos mão de tudo o que nos queima por dentro. não concebemos sequer a possibilidade de o sofrimento ser só uma ideia, um conceito, um preconceito, uma herança. e sofremos até quando não queremos sofrer. sofremos para não sofrer mais.
despregar os olhos da cruz é negar a nossa própria humanidade e é por isso que nos é tão difícil fazê-lo. quem seríamos nós, sem dores e sem feridas? quem seríamos nós, se não houvesse mais nada de que nos queixássemos? quem seríamos nós, se Cristo afinal não tivesse sido cruxificado? e, no entanto, todos nós temos dias assim, pedaços de vida sem dor, momentos em que despregamos os olhos das feridas, alturas em que sofrer nos parece, afinal, o maior dos absurdos e o desperdício mais estúpido. quase me atreveria a dizer que, quando largamos as nossas dores, quando as esquecemos, quando nem sequer nos lembramos que as temos, não sabemos quem somos. a leveza que toma conta de nós parece irreal, levitamos como se não houvesse mais peso, tornamo-nos anormalmente felizes. humanamente, porém, é impossível que o sofrimento nos tenha deixado para sempre a gozar dessa anormalidade, ou então seríamos anjos ou qualquer outra coisa que a matéria não pudesse atingir. 
mas somos humanos, pois é. não deixou de haver carne nem sangue, não deixou de haver cruz, não se escoou do nosso corpo a memória das dores ancestrais, nem nós saberíamos o que fazer se o lugar onde sempre as guardámos desaparecesse sem deixar rasto do nosso mapa genético. e, de novo, sofremos. sofremos tanto, sofremos por tudo, sofremos por nada, sofremos até quando não sabemos por que é que sofremos, quase como se a dor fosse uma prova de vida, uma garantia de que continuamos aqui, uma maneira de ocuparmos o tempo, um mérito que um dia nos fará ser merecedores da redenção e da glória dos céus. 
e então desprego os olhos da cruz, palpo o meu corpo e não encontro uma única chaga, não há sequer cicatrizes de feridas antigas, não me dói nada. desfaço a noção que tenho de mim como um punhado perene de ossos, de órgãos, de células, de músculos e nada lateja. ponho as mentiras de lado e desligo os ecrãs onde, repetidamente, se projectam todos os filmes desde que nasci até hoje e alguns outros que nem sequer aconteceram ainda. escrevo 'paixão' na certeza de que as palavras nem sempre falam verdade. é sexta feira e a paixão de hoje exala um hálito trágico que não vou respirar. e escolho escrevê-la sem recorrer à memória de nada, mas apenas à terra que habito. pai chão. e Cristo surge-me então como uma luz de presença benigna. e o milagre da cura é segui-la sem deixar que se apague, já que é apenas no escuro que o sofrimento se acende.

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