terça-feira, 20 de setembro de 2011

c de clara

- fala-me de ti
pediu ela, depois de ter chegado meia hora atrasada.
mas preferi falar delas. fazia um calor de plantar ananases, tinha estado a plantar um capsicum laranja e outro capsicum vermelho de manhã, as unhas ficaram cheias de terra, estive quase para ir assim para o almoço, com as unhas pintadas de terra e de capsicums, não me lembro de alguma vez as ter pintado nem de vermelho nem de laranja
- são gostos!
sim. há gostos para tudo. desgostos, tragédias, coisas sem importância nenhuma que, volta não volta, transformamos em dramas, contei-lhe
- são nove. 
- para quem está de fora, a conversa não faz sentido nenhum - não disse ela, mas apeteceu-me inventar.
pedimos a sopa e era de beterraba, chá frio de gengibre e limão, gosto da juba loira que não faço ideia como penteia, pois não acredito que exista um pente capaz de penetrá-la. 
- vá, conta lá.
nada. calada. muda. a mudar de conversa e assim.
- são nove...
não sei dizer - nunca soube - se é a ficção que imita a realidade ou se é a realidade que imita a fixação das ficções, mas avisei-a
- não vou escrever com as regras do novo acordo ortográfico, ok?
saladas. de chèvre para ela, grega para mim. lembrei-me - mas foi só agora - da εντροπία - a tal da grandeza termodinâmica que aparece geralmente associada ao que se denomina por 'grau de desordem' -, continuo a acreditar que é mesmo assim.
- nove?
- nove.
disse-lhe os nomes e contei-lhe as histórias. continuava um calor de plantar ananases, suávamos, apesar do limão, do gengibre, do gelo. misturavam-se todas
- as nove?
para quem ainda não as conhece, é muito normal que as baralhe. nem eu sei o que lhes reservo, se lhes reservo seja o que for ou se são elas que me levam a mim e nem sei bem para onde. sei que vai dar-me jeito a Zicca - Zicca? - agora saber italiano, porque o marido da C. também é, italiano, fotógrafo, disse-lhe
- anda atrás dos cenários de guerra mas é sempre com a paz a saltar-lhe dos olhos que volta para casa.
- estou a gostar, estou a gostar, conta mais.
contei. falei-lhe da P., que de repente mudou, deixou de ser quem eu achava que era
- coisas da sombra
expliquei-lhe. 
falei-lhe da R., tão deprimida, depois do aborto espontâneo, teve mesmo de ser. falei-lhe da V., que não é de Vitrine, mas podia ser, é a mais ausente das nove
- talvez.
talvez porque não sei. não sei de todo o que lhes acontece, há alturas em que são elas que mandam.
falei-lhe da M. e da R. da sorte de haver neste mundo uma criança que, quando uma mãe morre, ainda tem outra. falei-lhe da Dulce Rosa e ela sorriu
- Dulce Rosa. gosto do nome.
falei-lhe da F. imaginei-a a fugir para França para ir ter com a irmã que tinha emigrado há já muito tempo, escapando-se assim às sovas do A. e à gordura do Bruno Miguel. 
- estou a gostar!
e pedimos café. 
quere-o para abril, mas já lhe disse que não tenho agenda, apenas o ritmo dos dedos nas teclas, a realidade imitando a ficção, a ficção imitando a realidade, as fixações e de uma coisa tenho a certeza: que um facto é um facto e se escreve com 'c', porque caso contrário é um 'fato' e falei-lhe no F. advogado. o marido da R., vai sempre de fato e gravata para o escritório. falei-lhe no R., marido da V. falei-lhe do N., que deixou a P. com um filho no ventre sem querer saber mais coisa nenhuma a respeito de nada. falei-lhe do Z. um querido, o Z., taxista e assim
- marido da Dulce Rosa.


falei-lhe de mim, pois está claro. e das tantas histórias que, todos os dias, se atravessam na minha mente e do tanto que gosto de as ter, mais não seja para as escrever e assim cumprir o meu dom e depois acrescentei
- a de que eu gosto mais é a C.
e é mesmo.
- C. de Clara
por mais que tantas vezes escureça.


terça-feira, 13 de setembro de 2011

45

diga?
quarenta e cinco.
ah, quarenta e cinco!
e a seguir pegou na chave. era um longo corredor quase sem luz, de um lado e de outro havia portas e em cada uma havia um número. 9, 12, 22, 57, 31, 46, 95, 15, 34, 29.
diga?
os alagarismos pareciam-lhe aranhiços, como se as portas fossem teias de madeira, punha a chave na ranhura e emaranhava-se nas voltas. uma volta, duas voltas, cinco voltas, vinte voltas, mas nenhuma porta abria e então era preciso dar de novo uma volta, duas voltas, cinco voltas, vinte voltas, agora em sentido contrário, para poder tirar a chave e experimentá-la na seguinte e repetir tantas voltas quantas fossem necessárias para achar o quarenta e cinco.
se em vez de 9, 12, 22, 57, 31, 46, 95, 15, 34, 29 visse escrito nove, doze, vinte e dois, cinquenta e sete, trinta e um, quarenta e seis, noventa e cinco, quinze, trinta e quatro, vinte e nove... era mais fácil?
não sabia.
a certa altura, o corredor clareava e, em vez de portas dos dois lados, passou a haver amplas janelas por onde entravam as paisagens mais remotas e mais belas. os pinhais mansos ocupavam uma delas por inteiro e espraiavam-se, indolentes, no rumor seco do verão. logo a seguir, era a chuva que caía sobre um rio plúmbeo, chumbo líquido que lhe trazia à memória o velho bruxo escanzelado que lhe comprimira as margens. fazia frio e através do vidro fosco pode entrever as mansas constelações que em tempos lhe apontara e que espantavam o inverno com o seu brilho perfeito. mais um passo e debruçava-se a saudar a lunar circunferência do amor, emoldurada pelos espelhos dos seus sonhos e reflectindo toda a esperança que sentia de cada vez que se banhava no seu colo de algodão doce. do lado oposto, o caixilho era de flores e o parapeito um extenso campo de onde colheu ervas de cheiro, frutos exóticos e várias espécies de sementes para a viagem.
quando de novo se estreitou - o corredor -, não deixando sequer espaço para haver portas ou janelas, nem de um lado nem do outro, manteve a chave no bolso e esperou quieta que surgisse a novidade. não tardou a acender-se uma minúscula clarabóia logo acima dos seus olhos e foi na sua direcção que se esticou. primeiro as mãos e o contacto estonteou-a, porque a luz tinha textura e a sentiu colada aos dedos. elevou depois o tronco e reparou como o chão se dissolvia. tirou a chave do bolso e meteu-a na ranhura do seu peito e de repente abriu-se o céu.
45.
diga?
quarenta e cinco!
repetiu, dando ordens ao seu corpo para que a acompanhasse, mas mais nada se moveu e já nem sequer fez caso.
o que é que disse?
que há-de voltar para o recolher quando acordar.
ou talvez não e repetiu:
45.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

ou tono, ou tono

não foi sequer premeditado, um dia apeteceu-lhe e pronto! justificou-se e escreveu a despedir-se, ah não sei quê e a humanidade quer é espanto e não porquês e mais isto e mais aquilo e então this is the end e muito obrigada a todos.
bluff?!
não. não era bluff. não era, que tivesse consciência, nenhuma farsa, não tinha cartas na manga e nesse dia, a essa hora, em que pôs fim ao chorrilho de palavras que a esventravam, acreditou que estava a salvo. do quê? nem ela sabe. e já nem sequer lhe interessa, salvar-se seja do que for, ou condenar-se a qualquer coisa, tanto lhe faz.
apego, é. vai-se a ver e é só isso. a humana idade tornando-se familiar a cada passagem de ano, o hábito da pele a transpirar ou a tremer, a sombra condensada sobre as pálpebras, a luz que tanto a vem espreitar dos sonhos, o carácter distorcido das mentiras, a brancura da verdade, as palavras, sempre as mesmas!, combinando novas frases e iludindo as perspectivas, a aventura da matéria que apodrece ao mesmo tempo que alimenta a eternidade,
que milagre!
e afinal aqui está ela. e tanto faz a quem chamo ela. tanto faz a quem chamo eu. tanto faz quem somos nós. a humana idade dos porquês é, afinal, deliciosa!
(diz o outro e muito bem)
sobretudo porque nunca tem resposta e, quando tem, ela varia e avaria e repete a sensação que se tem perante o espanto, afinal sempre é verdade, que queremos espanto, muito mais do que porquês. ou porque sim, ou porque não, vai dar ao mesmo.
ou talvez não.
e o que constato é que, vista daqui, ela se ri às gargalhadas. não faço a menor ideia se é de espanto, felicidade, masoquismo, insensatez, esquizofrenia, não me interessa. por mais que a queira controlar, nunca consigo. por mais que a cale, ela não cede e tem voz própria e faz o que lhe dá na gana. não sei se é original ou se uma cópia do que seja e, de novo, não me interessa e a ela também não. nada lhe pesa, ela é apenas a que sopra e é difícil traduzir quando é vento o que se sente aqui por dentro.
bluff?
pode ser...
o mais provável, no entanto, é ser o vento do outono a aproximar-se de repente.