domingo, 3 de outubro de 2010

aos domingos,

quando eu era pequena, os meus pais levavam-me à Capela do Rato. eles ocupavam os lugares dos crescidos e eu ficava sentada debaixo do altar, a ouvir a viola do Pepe e as homilias do Pe Alberto, que eram sempre inspiradas. 
eram missas felizes, com toda a gente a cantar
 'porque eu sou a Vida, porque eu sou o Amor'
a luz entrava pela abóbada envidraçada do tecto e a única imagem que me afligia era a do Cristo na Cruz, com a cabeça pendendo e o sangue escorrendo das feridas pregadas nos pés e nos punhos. o sofrimento daquele Jesus não condizia com a alegria que eu sentia a cantar, nem com o menino que, na Catequese, me tinham mostrado a nascer numa cama de palha, debaixo da estrela mais luminosa do céu.
nunca mais voltei à Capela do Rato e o Pe Alberto foi morto, há muitos anos, com um tiro na cabeça. nunca ninguém soube porquê ou, se o soube, nunca contou.
baptizou-me tinha eu pouco mais do que um mês, mas por si só a água benta não servia de muito, não há água que nos transforme em pessoas de fé, por muito benzida que esteja. já a graça divina do espírito é outra energia e foi esse o milagre que o Pe Alberto me trouxe, poupando-me aos dogmas e às contradições da Igreja e ensinando-me apenas a ser filha de Deus.
com a simplicidade que lhe era própria, mostrou-me a graça e a fé, essa esperança de crer que reina uma alegria benigna no mundo e de eu tanto poder chamar-lhe Deus como de dar-lhe outro nome qualquer. o que importava, acima de tudo, era ser verdadeira e bondosa. e se a luz interior brilhasse em consonância com a que chegava directamente do céu, não era preciso mais nada.

penitências, pecados, genuflexões e confessionários eram apenas para as pessoas crescidas. para as crianças, o Pe Alberto reservava as canções e o espanto, a certeza de que Deus não castiga ninguém, a redenção natural pelo amor.

e por isso guardava os degraus debaixo do altar da Capela do Rato para, aos domingos, nos sentarmos em fila, de pernas cruzadas. por isso guardava um dia de Verão, em Agosto, para a sardinhada na Caparica, a broa e o Dão do almoço para comungarmos mais tarde, e guardava ainda uma noite de Outono, em Novembro, em que vinha jantar para comemorarmos o meu baptismo e a graça divina do espírito era assim renovada, ano após ano. mais tarde, na adolescência, quando me dediquei às blasfémias próprias do transtorno hormonal e o confrontava com a inexistência de Deus, o Pe Alberto sorria e dizia
 chama-Lhe o que quiseres, minha filha, mas nunca renegues o Seu amor.

a Igreja impingia-me um credo em que o criador do céu e da terra descia dos Céus e incarnava no seio da Virgem Maria para nos redimir dos pecados. ou, nos casos em que isso não era possível, para nos mandar para o inferno expurgar culpas, maldades e vícios. e era precisamente perante esta impossibilidade de todos os corpos conterem o milagre do espírito que eu hesitava e lhe dizia
 ou somos todos filhos de Deus, ou então isto não faz sentido nenhum.
ele voltava então a sorrir - tinha um sorriso amplo e benigno, o Pe Alberto - e apontava-me o céu. uma mancha imensa de azul, nesse tal dia Verão em que vinha à Caparica, e os dois deitados de costas na areia a abarcá-lo não só com os olhos, mas sobretudo a trazê-lo para dentro do peito. 
a seguir era o almoço, as sardinhas, a broa e o Dão consagrados no corpo e no sangue de Cristo, a viola, as canções, a comunhão do amor e Deus sempre connosco, na mancha de azul, no pão e no vinho, mas sobretudo no peito, onde a fé incarnava e nos oferecia o milagre do espírito, habitante do corpo. e foi graças ao Pe Alberto que aprendi que Deus é de facto muito maior do que todos os credos do mundo e que não há como negá-Lo. não há como não crer na alegria benigna da luz, não há como não querer a redenção natural de todos os seres através do amor.

lembro-me, como se fosse hoje, da última vez que nos vimos... e quando, poucos dias mais tarde, soube que o tinham matado, questionei, afinal, a bondade do Deus em que acreditávamos ambos. dei voltas e voltas para tentar descobrir a razão da morte brutal e injusta de um homem da paz e do bem. e, embora nunca tenha encontrado a resposta, hoje tenho a certeza de que ele a soube. no exacto momento em que a bala lhe entrou pela testa, ele soube porquê, soube porque morria daquela maneira e por que razão a dor se esvaía logo à entrada do céu, onde Deus esperava por ele, tenho a certeza, de braços abertos.

e porque hoje é Domingo, deixo-vos um excerto de uma homilia, proferida pelo Pe Alberto, há muitos anos atrás.

'Os santos morrem assim. Sabem porque é que eles morrem assim? Porque vivem assim, e não assado. E nós vivemos assado, e morremos assim. Morremos cheios de medo, de pavor, de aflições, de complicações. Vamos buscar os pecados que fizemos ainda aos 6 anos e já temos 60. Chamamos lá o senhor padre, sabem porquê? Porque não vivemos assim. Ah, se nós vivêssemos assim, Deus recebia-nos com a mão direita na cabeça e entregava-nos, lá onde estão os justos!'

7 comentários:

  1. O que me fez recordar o 'meu' Padre Lopes, na ilha de Moçambique, que até me levou a estudar o Alcorão pela mão do amigo dele, o imã da mesquita muçulmana da ilha.

    :))

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  2. Hoje, só me ocorrem as palavras de Alberto Caeiro. As tuas remeteram-me para as dele e... para ELE:

    E porque é Outono, mas poderia ser Primavera:

    "Num meio-dia de fim de primavera
    Tive um sonho como uma fotografia
    Vi Jesus Cristo descer à terra.

    Veio pela encosta de um monte
    Tornado outra vez menino,
    A correr e a rolar-se pela erva
    E a arrancar flores para as deitar fora
    E a rir de modo a ouvir-se de longe.

    Tinha fugido do céu.
    Era nosso demais para fingir
    De segunda pessoa da trindade(...)"

    Obrigada* Bom Domingo*

    Abraços por entre a chuva*

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  3. this very sunday in splitting shards of rain

    leaves no sin untouched and unturned

    ablaze all embers of guilt and pain


    not one to drown in shallow waters you

    jump on your raft ulissa and go tell everygod

    here tomorrow is always today

    nothing matters apart this kissing instant

    when i forgive and everything' s forgiven

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  4. passei por aqui muito rápido e rápido até pode ser o meu comentário mas não é de certeza rápida a forma como as tuas palavras ressoam em mim ... vou demorar-me nelas!
    Um beijo
    Vera

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  5. Querida Inês, depois de ler o que escreveste, só me apetece fazer-te um desafio, queres lá ir comigo amanhã (primeira 3ª feira de cada mês) rezar um terço (e maravilhosamente cantado...) à Capela do Rato? O terço é pelos doentes, soube dele, e comecei a lá ir, quando o Pedro ficou doente (e acredito na força da oração para a qualidade de vida que ele teve e para a ausêcia de sofrimento, o que é muito raro nestes casos!) Hoje, para além de ter algumas pessoas de quem gosto muito, doentes, e me fazer sentido continuar a lá ir todos os meses, cntinuo a gostar muito destas noites diferentes. Acho que vais gostar,só porque sinto. É às 21h30, queres vir? Um grande beijinho

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  6. Em nome das muitas sardinhadas/comunhões que partilhámos: o Pe Alberto ensinou-me mtas coisas importantes, mas tv a mais importante tenha sido o que é o pecado numa daquelas «confissões» a dois sentados nuns quaisequer degraus - «o pecado? o pecado é a negação do amor». bjs. Sofia

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  7. nem mais Sofia :) e felizes nós, que tantas vezes privámos com ele, em situações tão pouco ortodoxas, mas sempre tão verdadeiras...

    'yo quiero un pueblo que ri y que cante
    yo quiero um pueblo que hable de amor'

    e beijinhos de volta.

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