segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

estão ambos à mão


de um lado o x-acto, do outro o píncel. é só minha a escolha se corto ou se pinto, se rasgo ou se tinjo, se esventro ou se animo. é no que dá ter duas mãos. fosse só uma, ou mesmo nenhuma,  não se punha sequer a hipótese de ter de ser isto ou aquilo. só um caminho e nunca esta dúvida: vou pela direita ou vou pela esquerda? fossemos nós todos inteiros e nunca nada seria partido, pedaço, fragmento, estilhaço. e podem dizer à vontade
ah e então aqueles textinhos todos muito bonitos que escreves aqui sobre esse exercício de SER, ser simplesmente, é tudo uma farsa ou o que é isso?
e eu digo: é tudo verdade e é tudo mentira. e o que me confunde, o que vos confunde, talvez, é que hoje seja uma coisa que ontem não era e que amanhã possa vir a ser outra e até pode parecer que é tudo colado com cuspo e eu digo
sim, é mesmo isso!
colagens de mim, não sei se com cuspo, sangue, suor ou com quê. sei que há dias em que é de x-acto e a eito, arranco-me os olhos e esventro as entranhas, rasgo-me toda e outros em que, coberta de cores, me animo a ser céu e me tinjo de azul e então?
está tudo à mostra, o branco e o preto, o sim e o não, a certeza e a dúvida, e é nesse exercício que me vou descobrindo. bom dia alegria, bom dia tristeza, balança para a esquerda, depois para a direita, e de novo para a esquerda, e outra vez para a direita e às vezes enjoo, é verdade, e então?
ah!, então é porque não sou o que escrevo, não sou o que digo, não sou os textinhos bonitos que ponho a boiar no néon, e eu digo: sou e não sou.
e admiro-me que não sejam todos assim, sendo e não sendo, esquerda e direita em toda a gente, estilhaços em tudo, fragmentos no peito de todos, mesmo todos sabendo que a nossa essência comum é só uma e a mesma. e então?
então nada! ou tudo ou às vezes ou sempre. tudo verdade, tudo mentira, todos neste momento do mundo em que o x-acto e o píncel estão ambos à mão, todos em busca do mesmo, já nem lhe quero chamar 'amor' outra vez, mas paz de espírito. e só há paz no balanço, para mim, só haverá paz no balanço, quando ao sentir-me a ir para a esquerda não desejar ir para a direita, quando ao ver-me a ir para a direita não me forçar a ir para a esquerda. quando, enfim, deixar de enjoar com as minhas próprias incoerências e me entregar às contradições sem mais resistência. é possível? não sei. é impossível? não sei. e, no não saber, vou sabendo que sei e não sei muitas coisas. e pronto, hoje é isto.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

SER

eu sei que tu gostavas que fosse outra a minha escolha. como bom ego que és, sei até que gostarias de ser tu a escolher o que eu não sou. afinal, não é isso que tens feito desde sempre? ainda eu mal tinha chegado e já te tinha à minha espera, desejoso de cumprires o teu papel e que eu me moldasse a ele, sem questionar se era esse o meu caminho e apenas aceitando as tuas ordens. e porque sabes, talvez melhor do que ninguém, que quando um ego cumpre bem a sua parte um Ser se esquece ser do Todo, aproveitaste toda e cada situação da minha vida para me levares a acreditar que eu era essa pessoa: uma pessoa sustentada pelas tuas directivas e refém dos teus caprichos. 

acontece-nos a todos, comigo não foi excepção. e então, a pouco e pouco, fui delegando os meus poderes nas tuas mãos, entregando a minha arte aos teus disfarces, pondo os meus dons ao serviço desse teu querer dar nas vistas, pactuando com as mentiras que inventavas e que logo transformavas em verdades, respirando as tuas mágoas, fazendo minhas essas dores que tu carregas e para as quais pedes alívio, experienciando as tuas falhas, dando corpo aos teus fantasmas e reconheço que, na maior parte das vezes, tens sido bem sucedido. fazes tão bem a tua parte que é frequente dar por mim a esquecer-me do meu todo. mas ele é anterior a ti e esse Ser continuará a existir quando morreres, é de sempre e para sempre, é o que eu sou e que nada nem ninguém pode moldar. nem um ego poderoso como tu - como todos, afinal - pode agarrar naquilo que eu sou e dar-lhe a forma que deseja.

não vim aqui para te agradar, para te cumprir, para te dar voz. não vim dar uma volta até à Terra para que possas passear-te às minhas custas, divertir-te à minha conta, para que fales a meu respeito, para que sofras em meu nome. não vim bater à tua porta nem viver à tua sombra, alimentar-me dos teus medos,  sucumbir às tuas ordens, quando cheguei já era a Luz que me trazia e por mais que te esforces a apagá-la, a batalha está perdida.

sabes porquê? porque o que em mim é imortal é aquilo de que tens medo. porque, tu sim, estás condenado a ter princípio e a ter fim. não és mais do que o minúsculo intervalo que a minha humanidade ocupa aqui, não és senão aquilo com que eu pactuo quando tomo a tua parte pelo meu todo, nada mais para além da mente a querer disfarçar-se de alma.

e, no entanto, quando a escolha vem da alma não há ego que a derrube. podes até continuar a atrapalhar-me, podes vir com as ladainhas do costume, podes baixar a frequência do amor e fazê-lo parecer medo, podes chorar, podes ser dono e senhor de uma pessoa, mas não tens qualquer poder sobre o meu SER. se a tua parte é fazeres-me esquecer que sou o todo, há um todo que me lembra, a cada dia, que tu não fazes parte dele. isso!, estrebucha e nega, mas tu és simplesmente aquilo que és: um ego que se quer fazer passar por mim, mas que não é quem eu sei SER.



terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

não, o amor não deixa vincos


quanto muito, deixa vínculos, e só alguém que não sabe que uma alma não se dobra, não se enruga, pode aspirar a querer deixar-lhe um vinco seu. sim, eu sei, que há em todos os escritores esse desejo, essa ilusão de que as palavras amenizem as carências, essa vontade de virem a concretizar cada uma das metáforas que sugerem, essa arte de transformar a vida em histórias para depois viver as histórias e pretender que são a vida.
sei que existe em toda a gente a aspiração de deixar a memória dos seus passos nos caminhos que trilharam lado a lado com alguém, que perdure o rumor das conversas que tiveram e que o eco as mantenha verdadeiras e audíveis, que não se apaguem os vestígios de cada gesto que trocaram, cada beijo, cada festa, cada riso, que os sinais sejam sempre de presença, mesmo se ambos se ausentarem, todos queremos essa prova visceral de que um dia existimos uns nos outros e não mais nos separámos.
e, então, digo eu que não são vincos, não são marcas nem vestígios, o amor não deixa nada a não ser a sua essência. e quando o rasto é de uma dobra, de uma ruga, de uma ferida é por ser de uma outra coisa... de um apego, uma saudade, uma simples teimosia. esses sim, podem levar à ilusão de que o nosso coração mudou de forma, de que alguém pegou nele e o condenou a bater de outra maneira e, a isso sim, chamo de vincos. e então pergunto: por que razão havemos de querer deixá-los? o amor é liso, tão liso e tão macio que, ao passar-lhe a mão por cima, não posso nunca aspirar a querer vincá-lo. isso seria como querer conter-lhe o fluxo, impor-lhe dobras que não tem, pedir-lhe que me deixasse com a marca dos seus passos, em vez de, simplesmente, o tomar como caminho.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

um olho azul e dois castanhos


o par é humano e cor de terra, 
singular é sondar o infinito sem ter de abrir nenhum dos dois.

re-inventar


quem é que vai saber, diz lá? que os nós que fazias no arame e ao mesmo tempo desfazias com palavras são os nossos? que nós é este senão esse nós universal de toda a gente, que nós são esses senão aqueles que damos em nós próprios, todos nós, tantos nós e sempre todos à procura de dar laços? quem é que só por aqui pode intuir seja o que for? saber de nós, saber dos nós, saber dos laços que nos ligam? eu e tu, tu e eu, quem somos nós senão todos aqueles que saem dos seus nomes pessoais e se revêem nos pronomes? quem somos nós senão os que se reinventam a partir dos nós que dão e se entrelaçam um no outro?...

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

I star upon a wish -----☆ 〪〭〫〬

só a mim posso pedir que me dê tudo

é de mim e só de mim que não posso e que não quero: 
desistir.



tudo o resto é perene e passageiro. só eu perduro, numa essência que me é própria e sobrevive a qualquer estrago da matéria. é de mim, e só de mim, que não posso prescindir. só a mim, e a mais ninguém, que concedo o privilégio de ocupar todo o meu centro e daí, benignamente, irradiar para o mundo inteiro. ou então sombriamente, porque em mim também há sombra, a escurecer rente ao luar, mas sem me tornar minguante.

em mim estão a que chega e a que parte, a que agarra e a que liberta, a que expande e a que retrai, a que cria e a que destrói, a que acorda e a que adormece, e sou sempre eu que me convoco a cada instante, na frequência que escolher: mais para baixo ou mais para cima na espiral do infinito, onde o fundo é lá no fundo e o céu muito acima deste seu cume visível.

só eu escolho a quem me entrego, onde me enrolo, com quem me dou, quando é que rio, como é que choro, porque me engano, que trilho sigo. e nem sempre isso quis dizer que me entrego a quem me acolhe, que me enrolo onde é macio, que me dou com quem devolve, que me rio quando há motivo... às vezes choro e esqueço tudo, até que os olhos são os meus e que só molham o que eu escolho que  me magoe. quando me engano, só me engano se insistir que o erro é mau e que não tenho esse direito e surgir culpa. e quando o trilho desemboca num abismo, fui sempre eu que escolhi a visão sobre as vertigens, em vez da orla no meu corpo de
mulher

é de mim que me demito, quando cedo ao que é alheio, a mim que traio quando pactuo com uma mentira, só de mim pode vir esse consolo de sentir que sou inteira, só em mim posso encontrar o que procuro e que, afinal, não é nada que não seja desde sempre a minha essência. sou eu que vibro, é em mim que pulsa a vida, foi minha a escolha de me ter dado este nome e a forma humana do amor: carne e sangue que só doem quando há medo. 

é a mim, e só a mim, que devo tanto,  
só a mim posso pedir que me dê tudo.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

cada um vê o que quer num molho de couves

isso não é o título de um livro?
é. foi a minha amiga I que escreveu, mas ainda não li...
não é num molho de bróculos? 'cada um vê o que quer num molho de bróculos'?
pois já não sei, se é molho de couves ou molho de bróculos, mas vai dar no mesmo.
andamos todos doentes, é o que é.
sim, uns mais, outros menos.
há quem diga que é uma fase...
pois, toda a gente diz muita coisa.
e é sobre o quê, esse livro?
não sei, ainda não li... mas, sendo da I, só pode ser divertido...
e tu, o que é que queres ver no molho de bróculos?
não tenho a certeza se é molho de bróculos ou molho de couves...
até pode haver quem jure que é um molho de alfaces.
ou de grelos...
agriões?
seja o que for, vai dar no mesmo, não é? cada um vê o que quer, nunca o que é.
tudo tão subjectivo, pois é. mas, afinal, o que é que é o que é?
há quem diga que é o amor.
outra vez o amor?
outra vez o amor. porque, repara: se vires sempre e só o amor, tudo é o que é. o molho de couves é sempre e só um molho de couves.
ou um molho de bróculos...
a grande ilusão é quando às visões colamos as crenças. está tudo estragado!
por isso te digo que só há uma história. e que é sempre uma história de amor.
ah, mas nós temos medo das histórias de amor...
isso é porque fazemos histórias de medo das histórias de amor e lá voltamos ao mesmo: cada um vê o que quer num molho de couves.
ou num molho de bróculos...
se vires sempre e só o que é, tudo é amor.
até um molho de couves?
até um molho de bróculos!
e quando é que sai esse livro?
não sei, mas deve estar quase...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

S. Valentim



reza a história que, durante o reinado do imperador Claudio II, este proibiu a realização de casamentos, com o intuito de conseguir criar um exército. achava ele que, ficando solteiros, os jovens guerreiros se alistariam mais facilmente do que se tivessem à sua espera um lar doce lar e uma família. mesmo assim, o bom Valentim, que na altura era bispo do Império Romano, continuou a abençoar, às escondidas, o enlace dos noivos. descoberto o seu 'crime', o bispo foi preso e condenado à morte. durante esses dias de calabouço, eram muitos os jovens que lhe enviavam flores e bilhetes, onde diziam ainda acreditar no amor. entre as pessoas que mandavam missivas a Valentim, estava uma jovem e cega donzela. Asterias era filha de um dos carcereiros e conseguiu, por isso, permissão para visitar Valentim. foi tão grande o amor que, reza a história, Asterias recuperou a visão.  Valentim, esse, acabou decapitado, não sem antes ter escrito à sua amada uma última carta de amor, despedindo-se como 'seu Valentim'.

não sei o que diria o bom do S. Valentim ao ver o seu nome tornado pretexto para todos os tipos de marketing, mas não duvido de que não se importasse de se saber padroeiro do dia dos namorados. 'fetiches' à parte, sempre me irritaram um pouco os dias disto e daquilo e o dos namorados não é nenhuma excepção. que me lembre, recebi um dia um ramo de rosas vermelhas, no tal dia de S. Valentim - e, sim, soube-me bem e gostei - mas há mais trezentos e sessenta e quatro dias no ano que são tão bons ou melhores para nos namorarmos.

o que me deixa - de novo - perante a eterna questão do amor  no quotidiano e desta busca em que todos andamos, mais iludidos ou menos... é que chamamos 'amor' a uma série de coisas diferentes e, perdidos na ânsia de o ter, esquecemo-nos de que já o somos. ah, teorias tão boas, tão certas, todas tão justas e lúcidas! eu própria já aqui escrevi sobre o amor tantas vezes. não foi? posso até parecer muito sábia, na maior parte das vezes, mas esquivo-me e fujo, como o diabo da cruz, à minha essência de amor, sempre que vibro na frequência do medo. medo do quê? de confiar, de entregar, de render-me. 

o blá blá blá da lei da atracção, sem cair em excessos nem fatalismos, diz-nos que só atraímos aquilo que emanamos. mas não dá jeito nenhum acreditar que isso é mesmo verdade quando nos sai um marido ou um namorado que, por exemplo, nos bate. cada um saberá dos seus mecanismos, das suas sombras, medos, carências, mas só podemos atrair violência quando ela, de alguma forma, também existe dentro de nós. fodido, fodido, é que, na maior parte das vezes, agimos em automático e seguimos padrões que não conseguimos tornar conscientes. as desculpas são boas e apaziguam vazios, mas - e também já aqui o escrevi uma vez - não há pretextos que valham para continuarmos a pôr as 'culpas' nos outros. 

com Saturno em Balança, não há dúvida de que as relações - sejam elas quais forem - têm sido postas à prova. mas, atenção, não é o amor que está sujeito às pressões de Saturno. como todos tão bem sabemos, e todos tão confortavelmente esquecemos, o amor não carece de regras, estruturas, concessões ou cartilhas. é só quando o embrulhamos em sonhos de S. Valentim que acabamos por nos trair a nós próprios. e é fodido, mais uma vez, é fodido! ter consciência de que o que vai mal nas relações que mantemos está apenas espelhando o que vai mal em nós. 
a boa notícia é que somos, constantemente, seres em mudança e temos este enorme poder de, se realmente quisermos, perceber de onde é que emanamos o que atraímos. e mudar de frequência - o que pode não ser sinónimo de mudar de marido, de namorada, de companheiro. ou sim e, nesse caso, romper sem medo e sem dramas. e tornar consciente que, se o padrão lá ficar, faremos exactamente a mesma viagem da próxima vez.

amor, sim. palavra tão gasta que às vezes chega a parecer-me despropositado usar-se assim, por tudo e por nada. mas lá que é um grande milagre, disso tenho a certeza! pena que nem todos sejamos - para já - santos o suficiente para o sabermos fazer, descobrindo, sem nenhuma margem para dúvidas, que  essa é a nossa essência.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

senhora de mim

regresso
tu sabes
e eu sei
que não é ainda o regresso.  que não basta desempoeirar os pincéis, passar um pano nos tubos das tintas, espremê-los para que cubram as telas de cor e disfarcem as manchas de sombra que ao longo dos anos fomos alimentando e mantendo - e para onde fugimos sempre que o medo nos  tolhe - não é possível sermos senhoras de nós em poemas alheios, rimar com quem não rima connosco, pegar em retalhos para com eles compor o vestido do quadro - por mais maravilhoso que o ache e, até, que nos assentaria tão bem, a qualquer uma das duas...
mas só existe uma história e é sempre uma história de amor. o que me leva a sentir, cada vez com mais lucidez, que sofremos à toa. sofremos porque vivemos histórias de apego, mais nada. porque o medo murmura-nos coisas às quais, estupidamente, damos ouvidos. porque, afinal, regressamos a esses lugares onde não queremos voltar, mas de onde não queremos sair. não é estúpido isto?
eu sei
e tu sabes
as voltas que damos sobre nós mesmas e como se tornam perigosas quando são círculos, em vez de espirais, quando o cansaço é tão grande que não ousamos sequer dançar mais acima, elevar uma oitava o tom das canções, quando ficamos reféns das memórias, em vez de as ajustarmos a essa dádiva que é o presente e que está cheio de novos momentos, não é estúpido isto? acreditar que um dia fomos felizes, que um dia seremos felizes, sem perceber que hoje é o dia. é hoje o dia de sermos felizes, não há regresso aos lugares que ontem foram os 'nossos' lugares, por mais que os sintamos ainda habitados, por mais que ainda lá vivam coisas, pessoas, promessas e cheiros, é tudo mentira, a cada regresso vês que é mentira, não está lá ninguém, é hoje e aqui que és senhora de ti, é hoje e aqui que sou senhora de mim, num regresso que é sempre, e também, um cais de partida.
tu sabes
e eu sei
que criar é muito mais do que desempoeirar os pincéis, muito mais do que gastar a polpa dos dedos na escrita, muito mais do que compensar manchas de sombra com jactos de tinta, muito mais do que forçar rimas impróprias. só há uma história e é sempre uma história de amor. e é só essa que há para contar, cantar, esculpir, compor, pintar, co-criar e, sim, viver por inteiro a cada momento, sem apego e sem pena e sem mais ilusões de espécie nenhuma. 

 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

batik

nascia de todas as cores e podia vê-lo do sonho, 
o sol
aclarando a mancha da noite, elevando o timbre da luz à melodia dos pássaros, rodopiando sobre ela para que entrasse na dança. para já, não quer acordar, mas apenas sonhá-lo. a esse sol do desejo que tantas vezes pediu, mas que depois não sabia cumprir. não se cumpria e não era por falta de fé, nem sabia por que razão é que sofria daquela maneira.
só se fores masoquista
dissera-lhe alguém.
tinham-lhe posto à disposição aguarelas, pincéis, tubos inteiros cheios de tinta e, mesmo assim, insistia em escolher o x-acto. 
ainda dentro do sonho, lembrou-se de novo da frase  'por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição'. lembrou-se da folha de linhas, onde anotara os trabalhos de casa, e de ter uma lista que era mais contra do que a favor, lembrou-se de como era urgente fazer a tal escolha, iluminar a mancha da noite e acordar, finalmente, para todas as cores que o sol lhe propõe. há anos que sabe que é co-criadora da sua vida, não precisa sequer de recorrer à física quântica para perceber que aquilo que projecta acontece, não percebe onde é que ainda resiste, como pode o medo espreitá-la e perturbá-la desta maneira,
só se fores masoquista.
continua a sonhar. quer descobrir onde é que lhe dói, onde é que o sol queima, em que lugar é que se co-destrói, 
'por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição'
há anos que sabe que é co-destruidora da sua vida, que sonha a dormir, em vez de acordar para o sonho, que tudo o que pede acontece, de facto, não percebe onde é que ainda resiste. 
de novo, revê a folha onde escreveu todos os contras e onde há muito pouco a favor de si própria.
escolhas.
mastiga a palavra debaixo da língua, reformula a frase que leu já não sabe bem onde:
'por cada ciclo de destruição há um novo ciclo de criação'
se são ciclos, também este há-de acabar e não, não é masoquista.
o sol nasce de todas as cores, a vida é uma tela em batik e é co-criada por ela, basta que troque o x-acto pelas aguarelas e pelos pincéis. e mesmo que o ego estrebuche, quando se vir privado dos cortes que inflige a si mesmo e a manipule de lugares de carência com aquele ar de coitado que tão bem sabe fazer, a verdade é que tudo não passa de um gigantesco teatro de sombras e que não pode continuar a pactuar com mentiras.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

é tudo uma questão de escolhas

disse ele.
'escolhas', repetiu ela, e mastigou a palavra debaixo da língua.
ora aí está uma coisa que nunca gostei de fazer
observou, desta vez em voz alta, mas só para si mesma.
o anfiteatro dava para um amplo pátio cheio de árvores e ela estava sentada ao pé da janela. fazia calor. ele falava, falava, falava, a aula era aberta e havia mais gente a assistir e até quem, afincadamente, tomasse nota do que ele ia dizendo.
no fundo
dizia ele
é tudo uma questão de saber como se quer atravessar o inferno: sozinhos ou acompanhados?
agarrou na pergunta, moeu-a, mordeu-a, depois fê-la a si própria
acompanhada ou sozinha?
escreveu
'prós e contras'
na folha de linhas.
sozinha não tinha a quem se agarrar. acompanhada, o inferno seria a dobrar.
ele repetiu
há que escolher.
mas não escolheu e escreveu
'foda-se'
não sabia sequer se era um pró ou se um contra, isso agora não lhe interessava, ele continuava a falar sobre a necessidade das escolhas, como se balançar entre dois lados não fosse exequível nem desejável
às tantas, enjoa
disse ele
e ela escreveu
'vomitar'
quando a aula acabou, ele ditou os trabalhos de casa: fazer escolhas
fosse lá isso o que fosse
era a tarefa pedida. 
agarrou na folha e saiu: felizmente, escrevera tudo a x-acto.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

os dias da raiva


primeiro a Tunísia, depois o Egipto, agora o Iémen, a Síria... nada de novo. desde que o mundo é mundo que existe o conflito, o ódio, a guerra, o podre poder instituído, a manipulação, a ganância. não são mais sangrentos os dias de agora do que eram há séculos, o que se passa é que, agora, o sangue escorre à velocidade da técnica e todos o vemos, servido ao vivo nos telejornais, em directo na net, jorrando de feridas que, afinal, nos pertencem a todos, são nossas e doem. não são mais violentos os cocktails molotof que explodem hoje nas ruas do Cairo, do que as bombas que nos anos quarenta destruíam Londres, Berlim ou Paris, ou do que as espadas templárias que trespassavam os índios, ou do que as fogueiras onde ardiam judeus...
a esperança de que a humanidade evolua a caminho da paz é, provavelmente, tão vã como acreditar que, um dia, o bem predominará e que tudo se irá, enfim, acalmar e compor  num cenário de luz. já não sei onde li que, 'por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição'. recentemente, li o mesmo por outras palavras, num livro chamado 'a Luz e a Sombra'. não há como apenas expandir e criar. destruir e extinguir fazem parte da mesma espiral a que chamamos de cosmos, o movimento é contínuo. planetas, estrelas, galáxias inteiras rebentam, renascem, explodem, retomam a dança, desfazem-se em pó, recriam do nada. assim somos nós, seres humanos, à imagem e semelhança de tudo o que existe. 

dizia alguém noutro dia que não acredita que exista maldade no ser humano. foram já muitos os que defenderam a mesmíssima tese: que nascemos benignos e puros, mas nos tornamos maus com a experiência do mundo e à custa de feridas de infância que, eventualmente, nunca sabemos sarar. não sei se é assim. não faço ideia se esta é a era em que transmutaremos a humanidade para, enfim, co-criar apenas amor, à imagem do deus que nos dizem que somos. mas o que me espanta, o que de facto me deixa perplexa, é o confronto com a minha indiferença a estes dias de raiva. ou, talvez, a consciência de que a revolta perante guerras alheias, na maior parte das vezes em territórios distantes, ou vem bater em algo que todos nós transportamos, ou se resigna a ser puro fingimento.

recordo a invasão de Bagdad, há uns anos atrás, e de como avidamente seguia as notícias e acompanhava cada ofensiva e me insurgia contra a maldade e a injustiça de existirem homens assim, tão levianamente capazes de se matarem por simples ganância. como era fácil pôr-me de fora e acreditar que tudo aquilo não estava, também, dentro de mim. dividir os bons e os maus e pôr-me do lado que me convinha e que, claramente, era o dos bons. acusar este e aquele de não serem suficientemente evoluídos para perceber que a violência não é um caminho. criticar Mubaraks, Sadams, Bin Ladens, al-Assads ou seja quem for é facílimo. difícil, difícil, quase penoso, é mergulhar nesta vidinha que todos levamos e, à nossa pequeníssima escala, descobrir o traidor, o violador, o ditador e o assassino que também nos habita.

sim, imagino-vos a torcer o nariz, a fugir dessa ameaça que a sombra projecta, eventualmente a pensar 'esta gaja passou-se', pacificamente instalados nos vossos lugares de bondade e acreditando que, felizmente, estão longe e a salvo dos dias da raiva. longe e a salvo do sangue que varre as ruas do Cairo e que chega 'embalado' e seco aos ecrãs, longe e a salvo da revolução síria que sobe de tom a cada minuto que passa, longe e a salvo desta loucura que, ciclicamente, toma conta do mundo. desde que não nos diga  directamente respeito, a culpa é sempre dos maus.

e, no entanto, nós - todos nós - somos os maus. e todos nós somos os bons. à pequeníssima escala de cada um, todos temos em nós a luz e a sombra. 'por cada ciclo de criação há um ciclo de destruição' e não irá nunca ser de outra maneira. é assim que o universo pula e avança, é assim que morre e renasce, a espiral é só uma e a mesma: densa e destruidora nas profundezas, leve e criadora no cume. e não há como um dia quebrar este movimento contínuo e ficar parado, a boiar, num paraíso sonhado de amor. esta não é uma era diferente das outras, mas só mais uma etapa num ciclo infinito de manifestações.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

azulzinho?

não temos, disse a senhora da loja, apontando para uma série de prateleiras onde apenas se viam tons de cinzento.
ah, que pena, o cinzento é tão triste, respondeu-lhe a menina que mal chegava ao balcão, porque era alto e ela ainda pequena. 
a senhora da loja tentou consolá-la
quando cresceres mais um bocadinho, talvez chegues ao céu.

voltou três dias depois

e tocou-lhe à campaínha com o indicador da mão esquerda, enquanto com a mão direita segurava nos três cadernos. 
a sua consulta é só para a semana
disse ele, quando lhe abriu a porta.
reparou que a bata já não era branca, mas verde, fininha, e que não tinha nódoas de sopa na gola. estava sem óculos, o que lhe tornava os olhos ainda mais negros, as mãos enfiadas num par de luvas assépticas e tinha tapado a careca com um barrete.
peço imensa desculpa
disse ela, que estava de calças de ganga, t-shirt, as mãos com os dedos à vista, o cabelo pelos ombros.
a seguir, e pedindo também
com licença
entrou e esperou que ele fechasse a porta.
pois muito bem!
exclamou ele
já que veio sem consulta marcada, tenho pouco mais de quarenta minutos para a atender.
ela pousou os cadernos em cima da secretária e pareceu estar de acordo que quarenta minutos eram mais do que suficientes para o que lhe queria mostrar. sentou-se, cruzou a perna esquerda sobre a direita, pegou num dos cadernos, abriu-o ao calhas e leu:

'11 de março de 1993
Lucibel pisou o último degrau da escadaria que a conduzia ao átrio do SPLEUG (Sanatório Para Loucos Em Último Grau) com o mesmo ar tranquilo que toda a vida a caracterizara. assim que entrou, levaram-na ao gabinete do director. era muito magrinho e estava sentado numa poltrona eléctrica e com eléctrodos colados às têmporas esquerdas.
- olá Lucibel - gritou-lhe o director, na sua voz alucinada.
- como está? - perguntou Lucibel, e fez-lhe uma vénia.
- não me agrada nada o seu estilo nos diálogos - observou o director. - não podia antes pô-los todos seguidos, sem tracinhos nem linhas?
Lucibel tomou nota 'diálogos sem tracinhos nem linhas' e continuou, parece-me que o senhor director é completamente chanfrado! claro que sou, concordou o director, feliz por reparar que já não havia tracinhos nem linhas. aqui somos todos malucos, comentou o secretário-adjunto, que entrou nessa altura com a bandeja do chá. é servida? obrigado, Alfredo, enterneceu-se o director. para mim é sem açúcar, pediu Lucibel.'

sem que nada o fizesse prever, e sem que ele estranhasse - não se faziam ali previsões de espécie nenhuma e estranheza era assunto para outras conversas - ela fechou o caderno. 
a seguir, pegou noutro, abriu-o ao calhas e leu:

'7 de agosto de 1992
Adriana abriu o caderno que a mãe lhe tinha comprado na papelaria Fernandes com o entusiasmo próprio das meninas da sua idade e a ingenuidade de quem acreditava que, um dia, seria uma grande escritora. tantas folhas!, exclamou satisfeita. ao contrário de Adriana, Lucibel não se impressionava, e muito menos se emocionava ou satisfazia, com o facto de existirem cadernos cheios de folhas em branco por preencher. para ela, eram um desperdício de tempo, tinta e palavras. sabia, além disso, que por mais que Adriana escrevesse, as histórias permaneceriam sempre no mesmo lugar onde ela as tinha inventado, apensas às folhas que se encheriam de gatafunhos a esferográfica, e que nunca poderiam cumprir os seus sonhos. és má, disse Adriana, que tinha este dom de a ouvir a pensar. Lucibel não fez caso. mais cedo ou mais tarde, a escrita esgotar-se-ia numas quantas frases sem nexo, empilhadas umas em cima das outras, mas acabou por dar o braço a torcer. ok, Adriana, até tens uma letra redonda e certinha, os gatafunhos foram só uma metáfora para a inutilidade da tinta e do tempo que gastas a consumir-te.'

o terceiro caderno em que pegou estava forrado com papel autocolante às pintinhas e tinha uma barra de frutos colados em baixo. desta vez, folheou-o, sem ser ao calhas, pareceu-lhe, e depois leu:

'23 de maio de 1993
o fim de semana foi sonolento e Adriana dedicou-o à família. a chuva não incentivava passeios ao ar livre e o tédio instalou-se. no sofá ou isso! nem sempre se pode ter graça, lembrou Lucibel, que escolhera a cadeira em frente ao sofá e ao tédio para se sentar. pois não, concordou Adriana, mas hoje falta-me, sobretudo, a paciência. que pena, lamentou Lucibel, detesto ficar parada na mesma linha. também eu, respondi-lhes. e olharam para mim a pensar quantos mais fins de semana iria pará-las ali, naquele tédio de morte, enquanto lá fora a chuva caía.'

tinham-se passado exactamente trinta minutos, faltavam dez para as cinco, era segunda-feira, lá fora estava um dia radioso de sol, ali dentro tinha caído um silêncio soturno. foi ela a primeira a quebrá-lo.
não estou bem a ver de que forma é que isto possa causar-nos problemas
e olhou-o nos olhos.
o facto de você ser completamente tarada deixa-me desconfortável
confessou ele.
ela riu-se, pegou nos cadernos, depois levantou-se e despediu-se com um aperto de mão. quando estava quase na porta, ainda lhe disse
com que então completamente tarada?!... essa é boa, ó doutor!

tenho andado a ler o que escreve

e talvez vá ter de interná-la. 
a sua voz era grave e não ria. vestia a bata branca dos médicos, que tinha uma nódoa  de sopa na gola, as lentes dos óculos pareciam mais grossas do que era costume, notou que há pelo menos três dias que não fazia a barba e desejou que houvesse um buraco no chão por onde pudesse escapar-lhe. mas não havia.
pensou no A. e no Júlio de Matos, para onde parece que foi transferido antes de ontem ou ontem, ninguém tem a certeza, sabe-se apenas que não recebe visitas.  depois pensou na dose de comprimidos que lhe dariam se por acaso cedesse ao que tem andado a pensar nos últimos tempos e que, felizmente, não escreve. 
não percebe, por isso, como foi que ele teve acesso às palavras e perguntou-lhe o que fora, ao certo, que lera.
a sua cabeça
respondeu ele, talvez ainda mais sério, a voz já não era só grave, mas dura, o tom arranhava-lhe a espinha, achou-o muito antipático. 
acho isso um abuso, quem foi que lhe deu licença?
através das lentes grossas dos óculos e fixando nela os seus olhos pretos, explicou-lhe que não precisava de licença nenhuma, que tinha acesso à sua cabeça sempre que queria e que quem abusava era ela, a meter coisas lá dentro que nem ao diabo lembravam e a atá-las umas às outras com tantos nós cegos que, mais cedo ou mais tarde, estaria presa numa teia complexa
e daí a possibilidade de vir a ter de interná-la. 
ignorou-o e voltou a pensar no buraco que se abriria no chão. bastava escrever 'abriu-se um buraco no chão', como fazia quando estava dentro das vozes na ilha, e desaparecer, mas ele tirou-lhe a caneta da mão
não escreva, não ia servir-lhe de nada. 
confirmou que tinha razão, já que há anos que não escrevia a caneta. ultimamente, gastava a polpa dos dedos nas teclas e disparava ao acaso frases sem nexo, esforçando-se para que tudo parecesse normal, e parecia, organizando as rotinas para que nada sobressaísse, vestindo as mesmas máscaras de sempre, quem a visse diria que não tinha nada fora do sítio, e provavelmente não tinha. 
a grande diferença
disse ele
é que antigamente, quando ainda escrevia a caneta, as coisas ficavam fechadas nos seus cadernos e ninguém as lia. mas agora deu-lhe para as pôr a boiar no néon e, eventualmente, isso pode causar-nos problemas.
pois não, não era de agora, isso também ela sabia. costumava chamar-lhe 'escrita desopilante' e era capaz de encher mais de cem folhas numa semana, com as mesmas teias e os mesmos nós cegos com que agora enchia o ecrã do computador. 
mas não creio que isso seja um motivo para me internar
justificou-se.
há anos que a minha cabeça é um labirinto complexo e não estou lá muito interessada em encontrar a saída.
pois já eu acredito que seja precisamente o contrário
disse ele, e a voz amolecera entretanto
e que não está lá muito interessada em encontrar a entrada, já que no dia em que encontrar a entrada o seu labirinto desfaz-se e deixa de haver um motivo para dar tantas voltas sobre si própria. 
mais uma vez, ela pensou no buraco. teria de ser muito grande para poder escapar-se por ele e não, não bastava escrevê-lo, mas escavá-lo até lhe doerem os ossos, até gastar não apenas a polpa dos dedos mas todos os músculos das mãos e teria de ser fundo a ponto de lhe rasgar as entranhas. 
mas a consulta estava a acabar e não teve tempo de lhe dizer o mais importante: que, a ser internada, gostaria que fosse num quarto com vista e que os comprimidos não fossem amargos, mas doces, e que ao engoli-los a sua voz não a arranhasse.
ao vê-la sair, provavelmente para ir buscar as crianças à escola na sua imaculada máscara de mãe, apontou na agenda a data da consulta seguinte e, com um suspiro, murmurou
há gente tarada de todo!

levou-a

claro. leva-a sempre com ela, a sombra, e é sempre nos dias de sol que a vê mais nitidamente, avançando antes dela, quando o sol lhe bate nas costas, atrás dela, quando a luz a atinge de frente, não tem como fugir-lhe e já nem sequer quer. convencera-se a dar-lhe o protagonismo merecido. há alturas em que chega a deixá-la ocupar todo o seu ser e a autonomia é tão grande que é a sombra que age, não ela, é a sombra que se movimenta, tomando-lhe conta dos gestos, dando rumo aos seus passos, vagueando em torno de um círculo que, a cada dia, fica mais estreito e mais apertado. 
só mesmo uma sombra seria capaz de rodar em tão pouco espaço e é por isso
talvez
que se entrega, sem sequer resistir, à sua dança mortal. dentro do círculo, acabará por conter-se e, em vez de expandir-se, acabará
talvez?
por extinguir-se. 
confirmou as suas suspeitas quando leu a mensagem sobre os últimos tempos que alguém lhe enviara: 'um manto negro abateu-se sobre tudo'. não era só ela, afinal, e em todos os círculos do mundo, as sombras tomavam conta da dança e assumiam-se as protagonistas da humanidade. mais uma vez, foi a sombra, e não ela, quem respondeu à mensagem: 'negro, negro, para mim também'. lá fora, a neve cobria toda a paisagem de branco, mas nem sequer isso chegou para afastar a premonição dos ciclos mortais a que todos estavam sujeitos, mais cedo ou mais tarde. 
 
regressou extenuada. já era noite e reparou na sombra gelada, igual à superfície do lago, e não se extinguia, ao contrário do que no fundo de si desejava, mas expandia-lhe o frio e tremia, estendia-lhe os braços para que entrasse na dança e morresse com ela e foi então que recebeu a segunda mensagem: 'espiraliza-a. como quem não quer a coisa, vais desviando, abrindo, mílimetro a milímetro' e lá estava ela, a mandala feita no dia dos mortos, quando novembro tinha chovido também dos seus olhos e decidira sair desse círculo apertado onde só a sombra rodava, estreitando-lhe os gestos, resumindo-lhe os passos a circuitos fechados, intacta e espiralizada,  a mandala, como se nenhum ciclo mortal pudesse, afinal, atingi-la. 

a seguir, lembrou-se do verão e da casa da aldeia onde há muitos anos atrás o tinha levado, lembrou-se do quarto e da cama anos mais tarde, de estar nos seus braços e de o pedido lhe ter soado à promessa da felicidade que só a luz realiza e de nem sequer ter pensado que, já nessa altura, era apenas a sombra que, disfarçada de sonho, a conduzia para dentro de um círculo finito. lembrou-se da primavera no campo, do milagre da páscoa que ressuscitara a figueira no seu jardim caiado de verde, das metáforas todas a que recorre quando lhe faltam palavras para explicar o que sente, lembrou-se do fogo aceso nas lages e de como  as chamas se extinguem quando deixa de haver quem alimente a fogueira, das brasas na madrugada da praia deserta e de os seus pés as pisarem, da queimadura que arde no peito da sombra, sempre que a deixa assumir o protagonismo e então pegou nela e pô-la a rodar na mandala.
quando a terceira mensagem chegou, não precisou sequer de a abrir para saber o que dizia: mentalizar os mecanismos de tudo o que lhe acontece na vida é algo de que, para já, não prescinde e hoje sente-se imune à possibilidade de nada fazer sentido nenhum.