sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Clara *




'Não há ali nada que desumanize o milagre, pelo contrário. Dentro das quatro paredes da sala, tudo é familiar. A volumetria do espaço, o Inverno a entrar pela janela, o limoeiro do jardim reflectido nos vidros, a temperatura dos pássaros.
Estão todos em casa. A mãe, o pai, a doula, a parteira, os quatro aguardando o nascimento de Luz. Desde o princípio da gravidez que Pietro e Clara decidiram que a teriam ali. Longe do bulício metálico dos hospitais, a salvo das contracções induzidas, das batas assépticas, das mãos de borracha, da vulgaridade com que, hoje em dia, se revolvem as águas maternas para que se escoem depressa, nem que para isso seja preciso alterar-lhes o curso ou violar-lhes as margens. Ali, nenhum dos cinco tem pressa. Não há urgência nenhuma para além do amor com que esperam por Luz.  Há duas horas que as contracções vêm e vão, cada vez mais fortes, mais regulares e menos espaçadas, o colo alargou-se três dedos.
De cócoras no chão, a mãe inspira e expira. Faz do ar um instrumento de sopro, afina-o pelo seu próprio corpo e pelo corpo da filha, para que a dança do parto se faça em uníssono e nada se parta, afinal. Dor e prazer conjugados num só movimento, quem foi que inventou que parir é a paga por ter comido a maçã? A ela, soa-lhe bem, sabe-lhe bem, não se queixa dos espasmos nos rins, Pietro massaja-os. Não se divide. São dois corações, mas o pulsar que os convoca para a vida é o mesmo. A doula mede-lhe o pulso e confirma as batidas.
- Ainda falta. Respira.
A contracção dá-lhe tréguas e Clara levanta-se. Dá uma, duas, três voltas à sala. Que bom não ter a clausura da maca, a imposição do sossego, a horizontalidade da espera a colidir com a verticalidade dos médicos – que evocam a ética para os procedimentos mais disparatados e se fazem valer dos maravilhosos avanços da técnica para amordaçar as parturientes. Em casa, está mais à vontade e mais livre. Pode deambular, como agora, ou pôr-se de gatas, de cócoras, beber um golinho de chá, estender-se no chão, enrolar-se nos braços de Pietro, deitada de lado, enquanto a doula lhe faz um pouco de reiki. Pode gemer sem pudor, gritar, ter dores à vontade, pois sabe que vêm e vão e que nenhuma é para sempre e que ninguém a manda calar. O ventre chega a parecer-lhe de pedra, mas é de carne, é de pele maleável, macia, não rompe e não rasga, não quebra, não abre, apenas ampara a descida de Luz através do canal e faz parte do seu papel ajudá-la a descer pelo seu corpo, preparar-lhe o caminho, facilitar-lhe a chegada.
- Respira... Isso, respira... Com calma... Inspiiiiiiiira... E expiiiiiiiira!...
O colo continua a alargar. A parteira confirma:
- Seis dedos. Está quase...
A noite avança do lado de fora dos vidros polvilhada de estrelas, o limoeiro adormece na relva, o Inverno esfria as asas dos pássaros, é quase Natal e há velas acesas pela casa toda.
Pietro está proibido de fotografar. Clara evocou “uma questão de intimidade” e ele compreende. No entanto, os seus olhos disparam. Registam imagens, texturas, expressões, emoções. O rosto de Clara coberto por pequeníssimas gotas de esforço, a curva da nuca encharcada, a humidade no fôlego, a doçura das mãos postas em concha à chegada do corpo, o arco das costas, o ventre convexo, a perplexidade perante tamanha beleza... tudo isto se vai revelando aos olhos de Pietro. Retém o momento em que a mulher se levanta, de novo. Ajusta as íris às sombras que a maternidade projecta, persegue a silhueta proeminente de Luz ainda coberta de ventre, a fluir na parede, o ângulo redondo da carne, o enquadramento dos seios, que Clara ampara nos braços como se fossem colheitas de Verão. Não tarda e terá a quem dar o seu fruto.
- Acho que agora quero ir para o quarto – diz, então, Clara.
A doula e Pietro acompanham-na, enquanto a parteira vai até à cozinha pôr água a ferver. As contracções intensificaram-se, está com oito dedos de dilatação, senta-se em cima da cama de pernas abertas, encosta-se à cabeceira. Respira. Não tarda e vai precisar de todas as forças para trazer Luz ao mundo.
- Isso, respira... respira... respira.
Sente-a então a descer, devagarinho a caminho da vida cá fora, dor e prazer misturam-se agora no fundo do corpo. Está quase a expulsá-la, mas acha “expulsão” uma palavra forçada, pois não a expulsa de lado nenhum, apenas empurra para fora de si um ser que já não lhe pertence, que apenas gerou nas suas entranhas e que alimentou com o pulsar do seu coração.
- Está quase! – diz a parteira, e Clara faz força.
Faz toda a força que tem, mas ainda não chega. Pietro, ao seu lado, faz força também. Clara sente que lhe dói tudo, que o esforço que falta a transporta para fora de si, vê o tecto a abaular-se e a cama parece feita de espuma. Está quase, repete para si mesma, baixinho, entre dentes, ao mesmo tempo que, novamente, faz força. É então que sente a cabeça de Luz entre as pernas. É tudo tão rápido que não tem tempo para pensar em mais nada. A dor deu lugar ao prazer, sente-a a escorregar por entre as coxas suadas, já não força mais coisa nenhuma, rende-se apenas a esse milagre que é ser capaz de gerar uma vida a partir do amor. A parteira pega-a ao colo e Luz convoca a alegria de todos, o seu choro não é um lamento, é um hino de estreia. Luz respira e toma conta da cama e do quarto. É Pietro quem corta o cordão, ao mesmo tempo que sente criar-se um laço invisível que unirá para sempre três seres. Está tão comovido que desfoca as imagens, a voz sai-lhe tremida, tem vontade de se deitar ao lado de Clara e de Luz e é isso mesmo que faz, testemunhando como se encaixam as duas tão bem e aproxima-se mais.
Depois do esforço e da glória, depois do louvor e do espanto, a filha ainda cabe na mãe, agora do lado de fora do corpo. Enrosca-se nele, parece que a curva do peito foi feita a pensar no seu porte, minúsculo, que a penumbra da pele se projecta a partir do novelo que as duas compõem. Respiram, compondo um dueto perfeito. O ar amansa a chegada do dia, o limoeiro e a relva acordaram, as asas dos pássaros estão cobertas pela penugem dos anjos, sopra uma aragem dentro do quarto. E, no entanto, Luz estranha, talvez, a consistência a vapor. É demasiado gasosa para quem viveu meses a fio dentro de um mar de água doce. Por isso, procura-o na mãe, agora do lado de fora do corpo. Tem fome da espuma, guarda ainda a memória das ondas na boca, precisa de embalo, de amor, de alimento. Quando, enfim, o encontra, nos seios sumarentos e generosos de Clara, Pietro regista o momento, a sustentabilidade da vida, o amor. Desta vez, com a lente da Nikon, embaciada pela comoção dos seus novos olhos de pai.'


2 comentários:

  1. Inês,

    Que lindo testemunho de amor! Grata!

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  2. Inês, esta foi uma das passagens que mais adorei no livro. Parabéns pela sensibilidade e pela forma como arrepia com palavras.

    Um beijinho,

    Marta (Dolce Far Niente)

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