segunda-feira, 8 de agosto de 2011

a verdade


- não tentes dobrar a colher. é impossível! em vez disso tenta apenas tomar consciência da verdade.
- que verdade?
- a colher não existe.
- a colher não existe?
- depois verás que não é a colher que se dobra: és tu.





tomar consciência da verdade é um exercício que exige coragem. e a verdade é que todos nós queremos dobrar a colher. mas essa é a verdade cobarde. a ilusão de que há colheres à mercê da nossa força e vontade, a tentação de nos vitimizarmos quando colheres, garfos, facas, pessoas resistem, impunes, àquilo a que tantas vezes chamamos um 'gesto de amor'. temos a crença de que sabemos o que é melhor para os outros. a crença de que sabemos o que é melhor para nós. que delícia a voz do Emídio a lembrar-me
a mente é louca!
a mente, qual colher orgulhosa de não ser maleável, mas inoxidável, em aço, nunca se dobra, mas enlouquece quando se esmifra e se esforça por dobrar os outros à sua verdade. a verdade cobarde, de pôr nos outros a responsabilidade de não serem flexíveis. de não se assumirem como os maus da fita, não se responsabilizarem pelas nossas dores, de nos terem criado um inferno, de serem, coitados, tão pouco evoluídos, tão desumanos, cruéis e assim.
nada de novo, portanto. apenas a velha história da humana idade que se repete, quando queremos tomar a parte pelo todo e falar da verdade como se fosse uma só e a mesma para todos. mas a verdade é que a verdade, quando vem ao de cima, quando é realmente verdade, tirou o foco das dobras dos outros e, em vez disso, dobrou-se sobre si própria. recolheu-se à sua evidência, contrariou a sua inflexibilidade, tomou consciência da responsabilidade de assumir a mentira e que a mentira é exigir uma só e mesma verdade que sirva para todos. 
acho-me graça quando ainda acredito que dobro colheres, garfos, facas, pessoas. acho-me graça quando, dobrada sobre mim própria, descubro tranquilamente a verdade: afinal, ainda acredito em mentiras. acho-me graça quando, inoxidável, quero puxar pelo brilho dos outros e lhes digo que ficarei muito contente se eles reconhecerem a luz que transportam. acho-me graça quando ainda acredito que a verdade é que somos todos luz e amor. porque quando realmente me dobro e vou ao encontro do escuro, quando embato no ódio, quando escarafuncho na sombra, descubro a verdade: sou feita de tudo um pouco e é nas dobras doridas do aço que reside o meu ouro.

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