quinta-feira, 7 de outubro de 2010

mããããããe!




reconhece esta voz? este grito? o tom de urgência vindo não se sabe bem de onde que se repete e se estende e ecoa por todos os cantos da casa?
 - mããããããe!
tão insistente que nem sequer dá para nos fazermos de distraídas? de surdas? de parvas?
 - já vou!
- não grites!
- mas o que é agora?
agora - e sempre! - é sempre uma coisa qualquer. fome. sede. sono. chichi. um puxão de cabelos. um brinquedo partido. um pico no pé. uma turra. um desenho rasgado. medo do escuro. uma abelha que entrou pela janela e pousou em cima da cama. um dente a abanar.
 - mããããããe!
 - o que foi?
uma barbie que perdeu a cabeça numa guerra de irmãos. uma tartaruga ninja mutilada pelo primo mais velho. um copo entornado no chão da cozinha. os olhos cheios de champô. um joelho esfolado. um ataque de fúria. um prenúncio de birra. um capricho.
 - ó mããããããe!
a urgência sobe de tom, parece que trepa pelas paredes acima...
 - já vou!
- espera aí!
- mas o que é que se passa contigo?
um dedo entalado na porta do quarto. uma teia de aranha no tecto. um arranhão de nada na perna. um comando de vídeo sem pilhas. um fantasma debaixo da cama. cansaço.
 - mããããããe!
 - diz lá, o que é?
e, então, seja o que for, depois passa, a voz baixa de tom, a casa volta a ficar em silêncio, o nosso nome fica mais curto e mais doce, estamos mais perto.
 - mãin...
 - sim?
e é quando nos saltam para os braços e se enroscam no colo.
 - ó mããiin...
 - diz lá, o que é?
e é mimo. ou também pode ser manha. é bom de qualquer maneira. quando se encostam e ficam molinhos e nos pedem para contar uma história ou nos contam o que fizeram na escola. quando partilham segredos, migalhas, berlindes. quando a urgência, afinal, é só de um afago, de uma festa, de um mimo, de um sinal inequívoco da nossa presença.
 - mãe...
num timbre tão meigo que nos faz ceder aos caprichos. perdoar as ofensas. subestimar o copo de leite entornado no chão da cozinha. ficar meia hora a tentar consertar a ninja desfeita. caçar os fantasmas debaixo da cama. enxotar a aranha ou a abelha ou a mosca que se atreveu a deitar-se na cama. ir à procura de pilhas. jurar que a fada dos dentes existe. pôr betadine na ferida.
 - estás a ver? não é nada...
deitá-los, aconchegar os lençóis até ao pescoço, contar uma história, fazer cóceguinhas nas costas, esperar que adormeçam e, mesmo assim, até dentro dos sonhos, ouvi-los constantemente a chamar.
 - mããããããe!
ouvi-los, desde bebés, a treinar o som debaixo da língua.
 - mamãmãmã....
e nós aprendendo com eles a entoar o amor.
 - mamãmãmã....
crescendo com eles à medida das sílabas.
 - ma... mã!
deixamos de ter nome próprio para sermos apenas as mães. as mamãs. as mãezinhas. deixamos de ter liberdade, tempo, sossego, paciência
 - mããããããããããe!
e volta tudo ao princípio.
 - diz lá?
- o que é?
apenas as mesmas coisas de sempre. consolas estragadas, pulseiras partidas. dores de barriga. ataques de fúria. sono. fome. cansaço. trabalhos de casa. a bola que foi parar ao jardim do vizinho. a casa de banho inundada. o nariz entupido. os pés enregelados. uma saia que deixou de servir.
 - mããããeeee!
coisas diferentes a cada dia que passa e um dia notamos que mudaram de voz e cresceram, embora nos chamem com a mesma urgência de sempre.
 - mããããããe!
 - diz lá?
- o que é?
uma borbulha no queixo. um top fora de moda. roupa espalhada. trancarem-se na casa de banho. pêlos a nascerem debaixo dos braços. um teste no dia seguinte. o volume da aparelhagem no máximo. humores que mudam da noite para o dia. angústias. histerismo. mensagens cifradas."od e k a mae tá?" saídas à noite. vaipes. ressacas.
 - mããããããe!
um estado hormonal em mudança, um tom que se ajusta, um crescimento em conjunto e tudo o mais que houver para partilhar e sentir.
 - mããããããe!
e nem sequer é um nome.
 - mãe.
mas um chamamento interior.




5 comentários:

  1. Fazem-nos ensurdecer e achar que esta é a palavra que mais vezes dizem sem sentido, mas quando não a ouvimos...meu deus...onde estão todos os sons da palavra Mãe?
    Boa viagem sem eles. Boa escrita.
    Ontem fui à FNAC fazer a minha wishing list de aniversário e coloquei o teu livro sobre a MOrte.
    Bjs

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  2. Belíssimo texto. Toda a sinfonia da 'mãe'.

    Nem me lembro de, quando criança, ter chamado 'ó mããããããeeeee'. As minhas recordações da infância já estão muito esbatidas.

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  3. the first word we learn to say i <3 u for the first time, beautifuly

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  4. AH!Inês!
    Você me levou ao passado onde vivi tudo isso aí multiplicado por três...mais cachorro, periquito, papagaio...rssrsrs
    Hoje vivo nesse mesmo cenário só que o som é Vóóóóó!!!! e atrás vêm todos esses pequenos grandes problemas ou uma simples vontade de dizer eu te amo!!!!

    "o timbre é tão meigo que nos faz ceder aos caprichos. perdoar as ofensas. subestimar o copo de leite entornado no meio do tapete. ficar meia hora a tentar consertar a ninja desfeita. caçar os fantasmas debaixo da cama. enxotar uma aranha que se atreveu a subir à parede."

    ...esses ninjas ...aiaiaiaiai
    Adorei+adorei+adorei
    Beijo gostoso.
    Astrid Annabelle

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  5. e souberam-me mesmo bem, estes quatro dias no campo sem eles :)

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