terça-feira, 19 de outubro de 2010

das fadas e das magias que fazem

sempre que vou a uma escola falar do Pede um Desejo, há três ou quatro, ou mesmo cinco crianças que logo me avisam, com caras de caso
 olha que eu cá não acredito em fada nenhuma!
há outras que me pedem provas da sua existência, algumas querem saber coisas prosaicas, como o que é que elas comem ao pequeno-almoço ou se também lavam os dentes antes de irem para a cama, há muitas que partilham da minha crença e que dizem, com um brilhozinho nos olhos,
 eu cá acredito e até já vi uma!
no imaginário infantil, as fadas são sempre as fadas dos contos de fadas. as fadas madrinhas da Bela Adormecida, a da Cinderela, a Sininho da Terra do Nunca, as Winx - numa versão mais moderna - e milhares de outras parecidas. 
são sempre brilhantes, com asas, varinhas, pozinhos de perlimpimpim, capazes de transformar desejos em realidades, borralheiras em princesas magníficas, com poderes, dons e bondades que em muito transcendem a humanidade comum. 
quando, então, essas três ou quatro ou mesmo cinco crianças me dizem que não acreditam em fadas - e  que felizmente são sempre a minoria -,  em vez de tentar provar-lhes que as fadas do Pede um Desejo são verdadeiras, eu falo-lhes das 'tias mágicas'. 

as tias mágicas eram minhas tias-avós. nunca casaram e viviam as três, com os meus avós, num casarão em Pedrouços. eram bondosas e mansas, magrinhas, mas com uma largura de colo onde cabíamos todos (e, ao todo, somos dez primos), disponíveis para qualquer emergência ou urgência que pudesse surgir - ficarmos doentes em casa, esfolarmos um cotovelo, precisarmos de quem nos levasse ao ballet, de enxovais para as bonecas, de aprender a coser, de companhia para ir ao jardim - e lembro-me delas sempre a sorrir.
não tinham asas, não tinham varinhas e, em vez de pozinhos de perlimpimpim, costumavam brindar-nos com a sua paciência, infinita, com leite creme queimado por cima, com histórias de quando eram pequenas, com beijos e mimo e tudo o mais que vissem que nos faria crescer e, mesmo assim, continuar a acreditar em magias. 
os seus nomes verdadeiros eram Maria Emília, Maria Helena e Maria Eugénia, mas os seus nomes de fadas eram Mimi, Melé e Mejé, e a presença benigna das três, ao longo das nossas infâncias, trouxe alívios e curas que talvez só muito mais tarde tenhamos, realmente, entendido.
quando a primeira partiu - e que foi uma das gémeas - e pela primeira vez me confrontei com a morte, tinha dezasseis anos. já era um bocadinho crescida, portanto, mas custou-me imenso aceitar que as fadas fossem mortais. a segunda, a Mimi e a mais velha das três, partiu três anos depois e já não me custou assim tanto, pois começava a ser capaz de ver o fio contínuo que liga a Terra e o Céu e, até, de falar com elas quando olhava para as estrelas.
a Mejé viveu muitos anos e só morreu muito velhinha e ainda a vi com os meus dois filhos mais velhos ao colo e apresentei-lhe a Madalena, quando ainda só estava na minha barriga. tinha uma fé que movia montanhas, uma capacidade de aceitar dias de chuva e de sol, sempre com a mesma alegria e nem as extra-sístoles que lhe agoniavam o coração o faziam pulsar longe de nós. 
nos últimos tempos, vivia sozinha no casarão de Pedrouços, mas todos os dias um de nós ia vê-la, retribuíndo assim as magias que tinha feito connosco durante anos a fio e que eram coisas tão simples como as que tinha feito por nós. companhia, um chazinho de tília para o lanche, acompanhá-la à missa ao domingo, dar-lhe o braço para subir as escadas, levá-la a uma praia, a um jardim ou ao teatro, convidá-la para almoçar num restaurante com vista, dar-lhe muitos abraços e muitos beijinhos e fazer com que nunca sentisse que tinha ficado sozinha.
perante as minhas fadas humanas, mesmo as crianças mais cépticas sentem que a magia, afinal, não é exclusiva dos personagens dos livros e, menos ainda, uma mentira que lhes contamos para as fazermos felizes, mas que pode ser qualquer pessoa que até existe nas suas vidas. seja uma tia, uma prima, a professora da escola, a senhora que se sentou ao lado delas no autocarro e que tinha um sorriso maravilhoso, a mãe quando dá beijinhos nas feridas, o pai quando canta, a amiga que empresta os lápis de cor e por aí fora...
sim, é muito importante contar às crianças as histórias das fadas dos contos de fadas, mas mais importante é dizer-lhes que, também elas, são poderosas e muito capazes de fazer grandes magias no mundo. sem asas e sem varinhas e sem pozinhos de perlimpimpim que, isso sim, só existe nos filmes...

10 comentários:

  1. Inês querida!
    Assim disse La Fontaine
    “Se se quizer falar ao coração do homem há que se contar uma Fábula.
    Dessas que não faltam personagens, animais, deuses e muita fantasia,
    Porque é assim suave e docemente que se despertam consciências."
    Sua história me encantou. Moro no reino da fantasia!!!rsss
    Adorei suas tias-avós! Sei bem a que se refere. Fui criada por minha avó fada madrinha!!!!
    Vamos espalhar essa idéia. É disso que os homens precisam!
    Quero lhe agradecer por aqui também pelo comentário bonito que deixou lá em casa.
    Este seu texto irei partilhar agora no FB.
    Um beijo grande
    Astrid Annabelle

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  2. Inês

    Texto comovente. Eu cresci sem a noção de família alargada. Os meus pais foram para Moçambique, tinha eu meses e só aos 10 anos é que soube o que era ter tios (muitos, de ambos os lados) e primos (muitos, muitos), quando viemos todos à metrópole (como se dizia então)e durante alguns meses convivi com esta família, perfeitos estranhos para mim. Só aos 30 é que voltei a ver alguns desses rostos estranhos.

    Estas histórias fascinam-me.

    'com leite creme queimado por cima' - saudades!

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  3. António, não seja por isso: ainda tenho a receita das tias e é só encontrar a espátula de ferro com que se queimava o açúcar por cima (o que não há-de ser assim tão difícil :)

    Astrid, quando puder mande por favor o seu endereço por msg. quero muito enviar-lhe um exemplar do Pede um Desejo.

    e beijinhos para os dois.

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  4. Inês, comovente!!!

    Penso que estas fadas são a real magia de nossas vidas e, posteriormente, torço muito por isso, poder ser fada de algum pimpolho. hehe
    A magia somos nós que a damos aos pequeninos, cabe a nós divulgar o bem, a liberdade de imaginação, criação, ser.

    Beijo grande.

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  5. Obrigada querida por mais esta partilha ... e sabes bem que as tuas tias até para mim já foram fadas de viagens , sapatos... e laços invisíveis e mágicos.
    Gostei muito do texto.
    Ajuda a não esquecer como é importante dar mimo, retribuir,ecoar sem tempo por entre os elos do amor.
    Um beijo para a fada ... princesa dos cactos das flores menos óbvias

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  6. Muito humana essa postagem, calorosamente humana. Como a felicidade está nas coisas simples, singelas, doadas, banhadas de amor. Gostaria muito que todos os seres humanos tivessem/sentissem isso. E se soubessem doadores também, o são!, mas muitas vezes não o sabem.
    Beijo, querida

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  7. Saulo, bom ver você de novo por aqui :) fácil fazer magias, não é mesmo? e não apenas com os mais pequeninos, mas com todo o mundo. e somos todos tão mágicos! basta deixarmos vir ao de cima o nosso lado benigno.

    um beijo.

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  8. Verinha, é mesmo :) as tias mágicas continuam a fazer as suas magias. e as nossas fadinhas também :)

    beijo de volta (sem picos :))

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  9. Luciene, as coisas simples são mesmo as mais mágicas. obrigada pela sua presença.

    um beijo.

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  10. Sobre este teu texto mágico poderia escrever uma tese...

    Viajei e fiz um rewind a todas as peças que fiz para crianças. A todas as aulas que dei a crianças. À Fada dentro de mim. Quando mostro aos outros as Fadas que habitam neles.

    Todas as respostas das crianças em espectáculo, todos os comentários...

    A tristeza de ter ouvido tantas vezes a frase "Eu não acredito em Fadas!". A minha teimosia em trilhar caminho difícil para reconstruir esse imaginário desabitado dentro das crianças de hoje.

    As saudades que me bateram do pão quente no forno e dos bolinhos de azeite feitos pelas tias no Alentejo Alto e raiano.

    Todas as gargalhadas que arranquei a uma criança. Toda a confiança que lhes restituí. Todos os olhos que brilharam reflectidos nas minhas personagens mágicas por mim criadas.

    Todas as varinhas mágicas que tenho (literalmente) para quando lhes vou contar estórias. A purpurina que levo sempre comigo.

    A Fada Viviane que criei para lhes contar essas estórias. A forma como lhes explico que as estórias que habitam os livros saltam dos livros através da nossa voz.

    E a frase do menino, que no meio de um espectáculo (talvez o mais mágico que fiz até hoje...) quando perguntei à plateia, se alguém sabia onde se guarda o riso das crianças, e ele, muito solícito e de braço no ar, respondeu: "Eu sei! É no nariz!"

    Lêr-te, it's a kind of magic*

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