quinta-feira, 10 de março de 2011

quando acordei, o anjo dormia



levantei-me para ser como ele e só então reparei numa enorme asa negra que parecia colar-se ao meu peito, embora irrompesse das costas e me pesasse na omoplata direita. projectava uma sombra gigante no chão, já não parecia feita de espuma, mas de alcatrão, era áspera e era só uma. uma só asa, que estranho, e não o par necessário para o voo imortal dos humanos. 
ensaiei um esvoaço e caí no negrume e o meu anjo pareceu acordar nessa altura para me chamar a atenção de que podemos sempre escolher se voamos para baixo ou para cima e eu então perguntei
  também há anjos maus?
mas ele dormia de novo e não respondeu à pergunta. mergulhei mais a fundo no escuro, reparei que uma asa chegava para tanto, chegava para tudo, em vez do voo imortal dos humanos era a mortalidade dos anjos o que eu experimentava nessa manhã e repeti a questão
  também há anjos maus?
no fundo calaram-se os cânticos e tudo o que ouvia era o medo descendo às entranhas do corpo e um coro que entoava a escuridão em uníssono 
  apaga-te, porque morreste para seres como nós
e brindavam com sangue à minha descida aos infernos e já não se avistavam laivos de espuma em parte nenhuma e o ruído que cada asa negra exalava era o eco aflitivo do som do abismo, repetindo o convite à vertigem, à queda, ao mergulho no esquecimento da luz
  apaga-te, porque morreste para seres com nós.
sem oferecer resistência, deixei-me cair e, caindo, deixei que morressem em mim a bondade, a ternura, a amizade, o amor, a harmonia e a paz. caindo, deixei que me contagiasse o negrume e entreguei-me ao abismo. mas nunca mais batia no fundo do fundo, parecia que o fundo do fundo não tinha fundo, afinal, e que quanto mais fundo caía, mais fundo queria cair e maior era a vertigem. se aquilo era a morte, era diferente de tudo o que tinha previsto, se apagar-me era assim, era porque afinal havia anjos maus e eu era um deles, um desses anjos caídos de que rezam as histórias dos homens, quando não sabem o que hão-de fazer ao desamor que vêem no mundo e tentam explicá-lo de acordo com o desamor que sentem neles próprios. e foi nesse momento, nesse exacto momento em que quis, também eu, explicar o desamor que vejo no mundo com o desamor que sinto em mim própria que cheguei ao fundo do fundo e que parei de cair.
acordado, o meu anjo esperava por mim e trazia com ele o par branco para a minha asa negra. juntos empreendemos então, e de novo, o voo de regresso lá acima, ao mesmo tempo que ele respondia à minha pergunta
  não há bons nem maus, tudo faz parte da mesma espiral.

2 comentários:

  1. Sim tudo faz parte.
    Inês...muito profunda esta viagem. Existem momentos onde estamos assim..no fundo do mais fundo e que não tem fundo...
    Um beijo doce minha amiga querida. Eu converso muito contigo em outras dimensões...
    Astrid Annabelle

    ResponderEliminar
  2. Que maravilhoso.
    Vim pela participação no Blog Viajante.

    Que texto belíssimo.

    Beijos de Luz.

    William

    ResponderEliminar