
éramos muitos, mas ainda não éramos todos, sobretudo não éramos UM. a convocatória era de protesto e, quando se convoca uma 'geração à rasca' para içar as bandeiras do protesto, a união é impossível - digo eu... ninguém se une verdadeiramente quando a energia é a da zanga, a da carência, a da falência. ninguém pode encontrar soluções enquanto não se assumir como parte do problema, ninguém pode pedir que, de fora, venha quem resolva o mal-estar que grassa dentro de cada um de nós. criamos carrascos sempre que vestimos a máscara da vítima, 'desempoderamo-nos' de cada vez que delegamos nos outros o poder de mudarem as nossas vidas, há anos que pactuamos com este sistema, tomando a democracia por um direito e, tantas vezes, esquecendo os nossos deveres. votamos, ou não? e há anos que votamos nos mesmos, alienando a possibilidade de não eleger 'mais do mesmo', se votarmos em branco. ou ainda há quem não saiba que, num cenário em que um terço dos eleitores votem em branco, as eleições teriam de repetir-se com 'sangue fresco' nas listas, ou então passamos a vida a esquecer-nos.
ontem, na Av. da Liberdade, ninguém era livre, afinal e 'à rasca' significava que há gerações e gerações que temos medo. com 'medo de existir', como tão bem já explicou o José Gil, o povo português dorme à sombra da neblina e da saudade, sonhando com as caravelas quinhentistas da conquista, mas enjoando com a simples visão do balanço do mar alto. sim, somos de brandos costumes, fazemos revoluções com cravos, entoamos o esplendor de Portugal afinadinhos, levamos a vidinha a prestações, damos crédito às promessas do pai Estado Providência, acreditando que tem mais é de nos levar ao colo, de nos subsidiar a insatisfação, o desalento e a preguiça, validamos esta sensação de estar em dívida, de cada vez que contraímos um empréstimo para podermos possuir mais qualquer coisa e onde é que isto nos leva? a mais do mesmo, digo eu...
se a precariedade de que tantos, ontem, se queixavam for tomada por castigo, ficaremos ainda mais 'à rasca'. se a 'culpa' continuar a ser dos outros, não passaremos mais de vítimas. se insistirmos na eleição de predadores, seremos sempre a 'caça' fácil. soluções? acredito que cada um será capaz de encontrar a que lhe sirva, quando finalmente assumir que está em crise não por causa dos corruptos, não por culpa dos políticos, não devido à falência do sistema, ao colapso das instituições, à ganância dos lobbistas, à prepotência dos 'mandões'. velhos padrões não podem mais ditar o rumo, há que mudar o paradigma. dormir envolto em neblinas, com saudades do passado e descrença no futuro é criar um presente envenenado. desejar TER - abonos, condições, facilidades, empregos estáveis, carro novo, um grande plasma, regalias - em vez de SER - humilde, empreendedor, criativo, tolerante, solidário - é estar a cair num logro: que o mundo mude para merecermos o nosso lugar ao sol, sem que para isso tenhamos de mudar e de sair do comodismo da sombra.
fossemos nós um país de chão minado, como Angola, um país onde se cai morto na rua e ali se fica, como na Índia, um país de ditadores, como o Egipto ou como a Líbia ou tantos outros, um país estilhaçado a cada esquina, como o Iraque, um país morto de fome, com a Somália, um país sem liberdade, como a China, um país de fanatismos, como o Afganistão, um país murado de lamentações, como Israel, um país que ainda não saíu dos escombros, como o Haiti, um país amordaçado, como o Tibete... fossemos nós outro país, que não pacífico e à beira-mar plantado e com Lys a abrir-nos um portal e o coração para o mundo novo, e eu percebia que nos manifestássemos em protesto.
assim, sugiro que nos juntemos antes em celebração. um milhão, dois milhões, três milhões... a descer pelas avenidas, todos de branco como um dia já fizémos por Timor, hasteando panos de todas as cores, em vez de slogans ridículos de auto-comiseração, entoando um hino novo em que o esplendor de Portugal já não seja esse queixume de uma geração à rasca, mas um coro em que cada um assuma finalmente o compromisso de dar voz ao coração e de fazer a sua parte.
ontem, cá em baixo, na avenida, estava o povo. mas, um pouco mais acima, a Liberdade abria as asas... quase diria que a pedir que elevássemos o tom e as intenções, que assumissemos de vez que somos a favor do voo, que somos UM, e não mais uns contra os outros, desejando, com verdade, ir ao encontro de nós mesmos.